Ataques contra jornalistas: dados revelam os desafios de ser comunicadora no Brasil

01 de maio, 2022

( Eliane Barros/Agência Patrícia Galvão)

Letícia Kleim, assistente jurídica da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)

Alvos constantes de agressões (44,3%), restrições na internet (34,4%), discursos estigmatizantes (16,4%) e processos judiciais (4,9%). Os dados do relatório Violência de gênero contra jornalistas, lançado em março deste ano pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com apoio do Global Media Defence Fund, da UNESCO, revelam as dificuldades de ser comunicadora no Brasil.

O relatório aponta que 127 jornalistas e meios de comunicação foram alvos de 119 casos de violência de gênero, dos quais mulheres jornalistas (cis e trans) representam 91,3% das vítimas. Em entrevista para o Boletim Violência de Gênero em Dados, do Instituto Patrícia Galvão, a advogada Letícia Kleim, assistente jurídica da Abraji que atua no monitoramento dos ataques a jornalistas e coordena o Programa de Proteção Legal para Jornalistas, faz uma análise desses dados e chama atenção para a necessidade de se desenvolverem mecanismos de proteção para as comunicadoras e de responsabilização dos agressores. 

 

Desde 2013, a Abraji monitora ataques à imprensa no Brasil. Sabemos que um dos principais desafios para esse tipo de levantamento é a subnotificação de casos, sobretudo quando se trata de pesquisas com foco em gênero. Como foi realizado o trabalho de coleta de dados para este levantamento recém-lançado?

Letícia Kleim: Desde o início, a Abraji identificou que teria esse desafio da subnotificação devido à estigmatização do ato de denunciar, de tornar público um caso que envolve violência de gênero. Então, procuramos diversificar os meios de coleta de dados. Já fazíamos um trabalho de acompanhamento de notícias a partir de alertas de palavras-chaves. E para identificar quais palavras eram mais comuns, mais recorrentes nesse tipo de matéria, fizemos uma análise lexical das matérias jornalísticas que retratavam casos de violência de gênero contra jornalistas. Só que sabemos que isso sempre passa por um filtro do que é considerado como notícia pelos veículos, que vão divulgar só os casos mais emblemáticos ou que envolvem jornalistas com mais projeção pública. Também desenvolvemos um monitoramento específico para os ataques que ocorriam nas redes sociais e vimos que a maioria dos casos realmente acontecia nas redes sociais e que, nesses casos, a maioria das vítimas eram mulheres. Também foi feita uma análise lexical a partir de estudo de casos: pegamos uns três ou quatro casos do ano anterior, que era 2020, para identificar quais eram as palavras mais comuns usadas nesse tipo de ataque, e chegamos a um conjunto de palavras de ataques, como, por exemplo, ‘jornalista militante’. Enfim, algumas combinações de palavras que foram usadas para minerar os dados das redes sociais. Analisamos, ainda, os perfis mais comuns de autores de ataques para buscar esses casos, o que foi uma outra fonte de coleta de dados. E, para chegar nos casos que estão para além das redes sociais, fizemos parcerias com organizações que já atuam tanto com liberdade de imprensa e liberdade de expressão, quanto com o direito das mulheres, como o próprio Instituto Patrícia Galvão, para que elas nos enviassem casos que eventualmente tivessem conhecimento. Também desenvolvemos um formulário de denúncias para que a própria vítima, ou alguém que conhecesse uma vítima, pudesse preencher e enviar o caso para a Abraji. Por conta de toda a estigmatização que existe em relação à denúncia, e também porque o projeto estava se iniciando, isso não contribuiu tanto para o monitoramento, mas a gente continua com essa ferramenta do formulário no nosso site para que, a qualquer momento, uma jornalista possa fazer uma denúncia. Então, foram mais ou menos essas quatro fontes: notícias, redes sociais, parcerias com organizações e formulário de denúncia.

 

Entre os 119 casos analisados, 38% foram classificados como ataques de gênero. Quais são as principais características deste tipo de ataque?

Letícia Kleim: A maioria dos casos registrados foi de ataques que a gente chamou de “ataques contra a reputação e a moral da mulher”. Esses ataques usam aspectos relacionados à aparência, à sexualidade, até questões mais estereotipadas da personalidade, para desqualificar aquela mulher enquanto profissional. Então, não é uma simples crítica ao trabalho dela, como acontece no caso de jornalistas homens, por exemplo, ao dizer que ele é parcial, que ele, enfim, tem algum viés político. No caso da mulher, isso ultrapassa uma desqualificação da capacidade dela enquanto jornalista, são questionamentos que se valem desses outros tipos de violência, até narrativas, por exemplo, sobre supostos casos extraconjugais, narrativas sobre a sexualidade. Isso apareceu bastante na maioria desses ataques. Também identificamos ataques homofóbicos e um ataque transfóbico, e vimos casos de violência física, sempre relacionados com essa questão, ou então relacionados com a cobertura relacionada a gênero.

 

Os dados apontam que 68% das agressões se originaram no meio digital. Como você avalia a responsabilidade das plataformas digitais (Twitter, Facebook, Instagram, Whatsapp etc.) no enfrentamento a esses ataques? O que, em termos práticos, elas poderiam e deveriam fazer contra a propagação do discurso de ódio?

Letícia Kleim: Identificamos que as plataformas realmente se tornaram uma ferramenta para realizar esses tipos de ataques, que utilizam um pouco da estrutura e da dinâmica da ferramenta para serem propagados. São discursos de ódio que às vezes se iniciam com um comentário e se multiplicam em centenas de comentários e de perseguições. E temos também que analisar de uma forma crítica como o modelo de negócio das plataformas pode favorecer de certa maneira esse tipo de ataque. De um modo geral, identificamos que existe um ecossistema nas redes sociais voltado para essa questão do ódio, o que se reflete como uma ‘cultura de ataques’. Então, as plataformas têm muito a fazer para que sejam mais protetivas em relação às vítimas desses ataques. No relatório levantamos algumas recomendações como, por exemplo, a importância de fazer investimentos na moderação de conteúdos, sobretudo em termos de funcionários, pessoas físicas, para que tenham treinamento para lidar com essas questões de igualdade de gênero e direitos humanos — ou seja, uma moderação não automática. É preciso também que as plataformas tenham políticas e procedimentos bem definidos e que sejam mais eficazes para detectar um ataque quando ele ocorre, para cessar esses ataques e possibilitar que as vítimas possam reportar os casos e, assim, penalizar os que sejam infratores reincidentes, a fim de impedir que esses mesmos agressores continuem a retornar às redes propagando mais ataques. Porque vemos que muitos casos são reincidentes: os mesmos autores voltando a atacar. Então, consideramos que seria importante conseguir identificar e penalizar esses infratores que são reincidentes e que atuam como pontos disseminadores desses discursos de ódio.

 

Considerando que 60% dos casos de ataques estão relacionados à cobertura política e que 2022 é um ano de eleições, na sua avaliação, temos hoje mais mecanismos para monitorar, coibir e responsabilizar os autores de discursos de ódio do que em 2018? 

Letícia Kleim: Acho que avançamos pouco em relação a esses mecanismos de proteção contra esse tipo de ataque à liberdade de expressão e de imprensa. Temos um programa de proteção do governo federal, que nasceu como programa de proteção para defensores de direitos humanos e que, a partir de 2018, começou a incluir também comunicadores e ambientalistas. Mas essa inserção ainda é muito tímida frente ao problema que temos — são muito restritos os casos que conseguem ser incluídos nesse programa. Com relação à questão de gênero, em especial, isso é ainda mais deficitário. Não temos uma política pensada para esse tipo de violência que as mulheres sofrem a partir das redes sociais. 

Por outro lado, acho que temos avançado em relação a um olhar mais atento da sociedade civil, que tem trazido esse debate de uma forma mais incisiva — não só sobre a violência contra jornalistas, como também sobre a violência política contra mulheres, o que também é um viés da expressão dessa violência de gênero contra a liberdade de expressão. Então, enquanto sociedade, temos dado uma atenção maior para essas questões, mas, com relação a mecanismos de proteção de jornalistas e de responsabilização dos agressores, não temos avançado. Isso ainda é um desafio, especialmente no caso da cobertura política, que acabou sendo o tema que mais gerou ataques, sendo os atores estatais os principais agressores contra jornalistas, dentre os atores identificáveis. Chama atenção também como políticos, principalmente agentes políticos, autoridades públicas, têm se utilizado do ataque contra a liberdade de expressão, do ataque contra a imprensa, como uma bandeira do seu trabalho e têm construído agendas políticas em cima disso. Então, acho que a nossa preocupação é com a ampliação dessa violência, especialmente neste ano, por conta dessa instrumentalização, digamos assim, da perseguição contra a imprensa como uma forma de angariar seguidores, enfim, eleitores. E precisamos desenvolver melhor os mecanismos de responsabilização até no ambiente administrativo, para lidar com essa questão dentro da própria administração pública, dos diversos âmbitos do poder público.

 

Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados

Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Para receber o boletim por e-mail, inscreva-se neste link.  

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