Redes médicas defendem aborto como cuidado em saúde, e não como questão criminal

15 de junho, 2022

Em nota técnica, Rede Médica pelo Direito de Decidir – Global Doctors for Choice Brazil e Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras repudiam nova publicação do Ministério da Saúde sobre abortamento

No dia 08 de junho de 2022, chegou ao nosso conhecimento a publicação do documento “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento” pelo Ministério da Saúde do Brasil. Como profissionais e pesquisadores da saúde, sentimo-nos no dever ético de contestar publicamente as afirmações falaciosas disseminadas ao longo do documento, principalmente as que se referem aos aspectos técnicos e assistenciais relacionados ao aborto legal no Brasil.

Os autores do referido documento alegam trazer condutas atualizadas e baseadas em evidências científicas, porém incluem orientações obsoletas, não mais recomendadas cientificamente. Nos primórdios dos anos 90, quando os primeiros documentos do Ministério da Saúde sobre o cuidado em aborto foram publicados, era compreensível que as recomendações não trouxessem uma avaliação criteriosa dos estudos, haja vista a dificuldade de acesso à internet e às bases de dados internacionais. No entanto, em 2022, não podemos aceitar um documento que não explicite o método de seleção desses estudos e tampouco avalie o nível de evidência e o grau de recomendação das condutas.

Chama-nos a atenção o fato de o documento do Ministério Saúde citar diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) e fazer recomendações opostas a essas diretrizes, o que nos leva a questionar seu conteúdo, que traz graves violações de direitos humanos e de conceitos básicos da Medicina. Por isso, explicamos:

1.    SIM, ABORTO É UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA E DE JUSTIÇA SOCIAL 

Dados obtidos dos Sistemas de Informação – SIM (mortalidade), SINASC (nascidos vivos) e SIH (Hospitalar) revelam que entre 2008 e 2015 ocorreram em média 200 mil internações por ano por procedimentos relacionados ao aborto. Essas internações custaram, em média, 40 milhões de reais ao ano para o Sistema Único de Saúde (SUS). De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos como causa básica aborto. A maior proporção dessas mortes ocorreu entre mulheres mais vulneráveis: pretas, indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro- Oeste, sem companheiro.

É inaceitável a afirmação do atual Ministério da Saúde que “mortes por aborto respondem a um número pequeno” (página 7), em uma clara tentativa de minimizar o problema, invisibilizar a questão e descaracterizar o aborto como uma questão de saúde pública. Ora, a saúde pública deve se ocupar de atividades que visem a “reduzir na população a quantidade de doenças, de mortes prematuras, de desconforto e incapacidades produzidas pelas doenças”.

A maioria das mortes maternas são evitáveis e cabe ao Estado envidar esforços para que nenhuma menina ou mulher morra em decorrência de um aborto, independentemente se essa é a primeira, quarta ou quinta causa. Se uma única morte evitável ocorresse, teria que ser de interesse e responsabilidade do Estado.

2.    SIM, EXISTE ABORTO LEGAL NO BRASIL 

Informação falsa: “Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude.” 

O termo “aborto legal” é indexado nos descritores da saúde desde 1964 (DeCS/MeSH) e tem como definição a “finalização de gestação em condições permitidas pela legislação local”3. Esse é exatamente o caso para os três permissivos legais da legislação brasileira: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal.

Aliás, se o documento do Ministério da Saúde fosse fiel às referências citadas ao final do texto, não só reconheceria o termo “aborto legal”, como envidaria esforços para que o aborto fosse descriminalizado no Brasil (descriminalizar significa retirar o aborto do Código Penal4), e não garantido apenas em permissivos específicos. A OMS, em suas diretrizes mais recentes de 2022, recomenda contra o aborto apenas por permissivos legais e defende sua total descriminalização 5, já que aborto é um cuidado em saúde, e não uma questão criminal (bem ao contrário do que o Ministério da Saúde afirma).

3.    ABORTO LEGAL NÃO É CRIME E AMEAÇAR MENINAS E MULHERES COM INVESTIGAÇÃO POLICIAL É TORTURA DO ESTADO 

Informação falsa: “Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno.”

Aqui, o Ministério da Saúde tenta explicitamente criminalizar não somente as mulheres que necessitam de um aborto nos permissivos legais, mas também os profissionais de saúde que dela cuidam. Em um texto confuso, mistura investigação policial com aborto em casos de risco materno. O que o Ministério da Saúde quer dizer com isso? Que todos os abortos legais serão investigados pela polícia? Quem será investigado no caso de um aborto terapêutico (aqui, para mais uma vez exemplificar o conceito: aborto terapêutico é o “aborto induzido para salvar a vida ou a saúde, física ou mental, de uma mulher grávida”)? O médico? A mulher? E nos casos de gravidez decorrente de estupro? A polícia vai investigar e uma eventual decisão judicial determinará se há excludente de ilicitude?

Alegar que a polícia vai investigar a mulher ou a menina vítima do estupro, ou a gestante com grave comorbidade materna em risco de morte, ou ainda, a gestante impactada emocionalmente e em sofrimento psíquico por um diagnóstico tão ominoso como de gestar um feto anencéfalo, é tortura psíquica do Estado brasileiro, além de flagrante quebra do direito constitucional da intimidade, privacidade e do sigilo profissional.

Essa confusão proposital visa a cumprir a agenda anti-direitos humanos da pasta da Saúde do governo federal, que busca intimidar a população e os profissionais de saúde que cumprem seus deveres éticos e profissionais ao assistirem as meninas e mulheres brasileiras com direito ao aborto. Em um cenário em que menos de 4% dos municípios brasileiros oferecem o aborto legal6, essa tentativa é indigna e perversa, colocando em risco as mulheres, pois as afastará do cuidado em saúde necessário.

4.    A COLETA DE VESTÍGIOS FORENSES É UM DIREITO SOB CONSENTIMENTO DA MULHER 

Trecho transcrito da Portaria 2.561/2020, já criticada por especialistas: “Preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime…”

Com o objetivo de investigar o estupro e não o aborto, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.561/2020, que determina a notificação dos estupros que ensejam interrupção de gravidez, com preservação de material para fins periciais.”

Aqui, devemos explicitar dois pontos. Primeiro, a portaria 2.561/2020 traz violações éticas e de direitos humanos, pois não se pode coletar material biológico sem o expresso consentimento da pessoa. A portaria 2.561/2020 deixa entender que todas as vítimas de estupro que desejam a interrupção da gravidez são obrigadas a consentir na coleta de material biológico para investigação criminal.

Segundo, a mulher ou a menina tem direito de escolher qual o método de tratamento para o aborto induzido de sua preferência. A coleta de material biológico nas primeiras semanas de gravidez só se faz possível por meio do tratamento cirúrgico (aspiração manual intrauterina – AMIU). Assim, todas as informações devem ser esclarecidas à pessoa, e somente se ela autorizar e escolher o método cirúrgico é que material pode ser coletado.

É importante esclarecer que a preservação do material biológico para fins forenses requer a necessária articulação entre os órgãos periciais e da saúde, com a necessária consolidação da cadeia de custódia, conforme normativa anterior dos Ministério da Saúde e da Justiça.

5.    ABORTO LEGAL VIA TELEMEDICINA É EFICAZ, SEGURO, REDUZ CUSTOS PARA O SISTEMA DE SAÚDE E É RECOMENDADO PELAS DIRETRIZES INTERNACIONAIS

Informação falsa: “… induzir o abortamento por telemedicina, utilizando-se de fármacos de controle especial, pode causar danos irreversíveis à mulher, uma vez que a imperícia por incapacidade técnica para realizar o procedimento em casa possibilita o perigo de advir um aborto incompleto, ruptura do útero, sangramento excessivo podendo levar a morte e o eventual efeito psicológico de observar a expulsão do conteúdo uterino. Esses fatores impõem, portanto, a internação da mulher em ambiente hospitalar até a finalização do processo.”

Mais uma vez, as orientações do Ministério da Saúde vão contra as recomendações da OMS citadas como referência ao final do documento. Para a OMS, o aborto até a 12ª semana da gravidez pode ser autoadministrado pela mulher e serviços de telemedicina também são recomendados nesse período gestacional.8 Isso porque atualmente já temos um conjunto robusto de evidências que atestam a segurança e a eficácia do aborto medicamentoso em regime de tratamento domiciliar, com orientações por equipe de saúde qualificada.

As afirmações do Ministério da Saúde sobre os riscos do aborto medicamentoso não encontram respaldo na literatura científica e, por isso, devemos ressaltar:

  • sobre o “risco de aborto incompleto”: com o esquema de tratamento disponível atualmente no Brasil (apenas com misoprostol), a cada 100 mulheres submetidas ao tratamento, cinco podem ter o diagnóstico de aborto 9 Nesse caso, o tratamento complementar pode ser: conduta expectante, continuar o tratamento com misoprostol ou completar o tratamento com aspiração manual intrauterina ou elétrica;
  • sobre o “risco de sangramento excessivo”: segundo dados de ensaio clínico que estudou o uso do misoprostol para o aborto induzido, a cada 100 mil mulheres tratadas, 40 necessitarão retornar ao hospital devido ao sangramento e apenas três terão diagnóstico de sangramento excessivo;10
  • sobre o “risco de ruptura uterina”: a ruptura uterina no primeiro trimestre da gravidez é um evento raríssimo. Uma revisão sistemática da literatura publicada em 2020 identificou 76 casos no mundo, dos quais apenas dois tinham antecedente de tratamento farmacológico para o aborto induzido. Nenhum caso de ruptura uterina foi identificado em outro estudo com mais de 50 mil mulheres tratadas em regime domiciliar para o aborto induzido;11
  • sobre o “risco de morte”: em um estudo epidemiológico descritivo realizado nos Estados Unidos sobre a mortalidade relacionada ao aborto induzido em 10 anos, a taxa de mortes foi de 0,7 a cada 100 mil procedimentos 12Esse risco é aumentado exponencialmente em 38% a cada semana de idade gestacional, o que quer dizer que o atraso na assistência à mulher que tem direito ao aborto pode acarretar em maiores riscos à sua saúde. Esse atraso no acesso aos serviços de aborto legal pode explicar o número alarmante de duas mortes em menos de 13 mil procedimentos registrados nos últimos sete anos (considerando uma média anual de 1.800 abortos legais registrados no DataSUS ao ano) no Brasil. Outra explicação pode ser a falta de qualificação dos serviços para prover um cuidado pautado nas evidências científicas mais atuais. A falta de qualificação dos serviços ficou evidente em um estudo brasileiro que analisou as mortes por aborto no Brasil nos últimos 10 anos. Nesse estudo, 95% dos procedimentos utilizados para o tratamento do aborto (espontâneo, incompleto ou induzido) foram realizados por curetagem uterina13 – tratamento obsoleto, proscrito pela OMS há vários anos e, surpreendentemente, ainda recomendado no documento do Ministério da Saúde de 08 de junho de 2022.
  • sobre o risco do “efeito psicológico de observar a expulsão do conteúdo uterino”: esses “possíveis efeitos psicológicos” não são descritos na literatura científica, mas não seriam diferentes dos efeitos do tratamento medicamentoso em regime de internação hospitalar. Em entrevista com mais de 2.400 mulheres que receberam o tratamento medicamentoso em casa, por telemedicina, nos primeiros meses da pandemia de COVID-19 na Inglaterra, 96% disseram estar satisfeitas ou muito satisfeitas com o tratamento e 80% teriam escolhido o tratamento por telemedicina novamente, mesmo em um contexto sem as restrições impostas pela pandemia.

6.    NO CONCEITO DE ABORTO INDUZIDO, O ELEMENTO QUE O CARACTERIZA É A INTENCIONALIDADE DA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ E NÃO A VIABILIDADE FETAL

O documento do Ministério da Saúde não menciona o conceito de aborto induzido, que é a condição clínica que caracteriza o aborto legal. A omissão do conceito de aborto induzido no documento leva a uma confusão proposital com o termo “aborto espontâneo”.

No meio jurídico, aborto é a interrupção da gravidez anterior ao tempo compreendido entre a concepção e o início do trabalho de parto, o qual é o marco do fim da vida intrauterina.15

Na área da saúde, o termo aborto inclui uma varidade de condições clínicas, que precisam ser definidas e diferenciadas:

  • aborto espontâneo (pode ser classificado como completo ou incompleto): “morte embrionária ou fetal não induzida ou passagem dos produtos da concepção antes de 22 semanas de gravidez ou pesando menos do que 500 gramas”;
  • aborto induzido (pode ser classifacado como completo ou incompleto): “perda intencional de gravidez intrauterina por meios medicamentosos ou cirúrgicos”;
  • aborto retido: “falha da gravidez, morte fetal ou embrionária não expelida do útero por pelo menos oito semanas”;
  • óbito fetal intrauterino: “morte repentina do feto em qualquer ponto no tempo durante a ”

A principal diferenciação que aqui interessa é entre o aborto espontâneo e o aborto induzido. Enquanto a idade gestacional e/ou peso fetal são elementos importantes do conceito de aborto espontâneo, esses elementos não estão presentes no conceito de aborto induzido, em que o elemento principal é a intencionalidade da interrupção da gravidez, independentemente de tempo gestacional ou peso fetal. Ou seja, no conceito de aborto induzido, não importa o estabelecimento da viabilidade fetal, pois a intenção no aborto induzido é a interrupção da gravidez.

7.    O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO NÃO ESTABELECE LIMITES DE IDADE GESTACIONAL PARA O ABORTO LEGAL

Informação falsa: “sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de aborto com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias. Nesses casos, cuja interface do abortamento toca a da prematuridade e, portanto, alcança o limite da viabilidade fetal, a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento é a conduta recomendada.

No Brasil, nos poucos permissivos legais, não há limite de idade gestacional estabelecido no Código Penal para o aborto induzido. Assim, como não há limite de idade gestacional na definição técnica, como já apresentado. A própria tabela da International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO), copiada na página 48 do documento do Ministério da Saúde, explicita a possibilidade de induzir o aborto em idades gestacionais acima de 22 semanas.

A omissão proposital do conceito de aborto induzido no documento do Ministério da Saúde, com a finalidade de confundi-lo com o conceito de aborto espontâneo, pode levar a duas graves situações: Meninas e mulheres estupradas que chegam aos serviços de saúde com gravidezes mais avançadas devem ser obrigadas a manter a gravidez até o termo? 1. Se sim, estaríamos diante de grave violação de direitos humanos, com caracterização de tratamento desumano e degradante pelo Estado, já explicitado em tratados internacionais da ONU.20 2. Se a resposta à questão anterior for não, a finalidade do texto proposto no documento do Ministério da Saúde é induzir prematuridade iatrogênica por meio da indução do parto? Se for esse o caso, trata-se de conduta indefensável, já que levaria a graves sequelas à saúde da criança nascida.

Estabelecer um limite de idade gestacional ausente na legislação brasileira parece servir a propósitos ideológicos, como o de atrasar a assistência de meninas e mulheres, de maneira a impedir o acesso ao aborto legal, como vimos acontecer com o caso da menina capixaba de 10 anos em 2020.

8.    A INDUÇÃO DA ASSISTOLIA FETAL EM IDADES GESTACIONAIS AVANÇADAS PODE TRAZER BENEFÍCIOS EMOCIONAIS, LEGAIS E ÉTICOS EM SITUAÇÕES ESPECIAIS 

Informação falsa: “O abortamento com excludente de ilicitude feito por médico não deve ser precedido de feticídio, principalmente nos casos em que houver viabilidade fetal, já que os estudos não mostram qualquer vantagem no procedimento.”

O documento do Ministério da Saúde faz referência a um estudo brasileiro com mulheres em situação de aborto induzido por malformações fetais incompatíveis com a vida e o desfecho estudado foi o tempo de indução do aborto.22 De fato, outros estudos apontam que a indução de assistolia fetal não traz benefícios para a duração entre o início da indução e a expulsão fetal. No entanto, as sociedades de Ginecologia e Obstetrícia e suas sub-especialidades recomendam que as induções medicamentosas em idades gestacionais mais avançadas sejam precedidas da indução de assistolia fetal por trazer benefícios emocionais, legais e éticos relacionados ao impedimento da expulsão fetal com sinais transitórios de vida. A Society of Family Planning (EUA)23 e o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG)24 (Inglaterra) são exemplos dessa recomendação (aliás, a recomendação de indução de assistolia fetal em gravidezes acima de 21 semanas e 6 dias do RCOG é mencionada no documento do National Institute for Health and Care Excellence – NICE – citado no documento do Ministério da Saúde).

9.    URGE A INCORPORAÇÃO DA MIFEPRISTONA E A MELHORIA DO ACESSO AO MISOPROSTOL NO BRASIL 

Informação falsa e omissão de informação: “A droga mais comumente utilizada é o misoprostol; o seu uso a cada seis horas mostra elevada taxa de sucesso. No Brasil, o misoprostol é uma medicação de uso exclusivo hospitalar.”

O tratamento medicamentoso de escolha é a combinação mifepristona e misoprostol, já que apresenta maior taxa de sucesso (aproximadamente 98%)25, quando comparada ao regime com misoprostol isolado (taxa de sucesso de aproximadamente 85%).26 O documento do Ministério da Saúde omite a informação sobre a mifepristona, que não é disponível no Brasil, talvez em virtude da omissão do Estado brasileiro em prover esse medicamento, que está na Lista de Medicamentos Essenciais da OMS desde 2005.

O documento do Ministério da Saúde ainda descreve erroneamente o intervalo entre as doses de misoprostol recomendadas para o tratamento do aborto induzido, em contradição, inclusive, com a tabela copiada da FIGO na página 48. O intervalo adequado entre as doses de misoprostol é de 3 horas.

O Ministério da Saúde também omite a informação de que o Brasil é o único país da América da Latina29 e um dos únicos no mundo a restringir o uso do misoprostol aos hospitais.30,31 Omite ainda a informação de que as restrições impostas pelas regulamentações brasileiras impõem dificuldades para o cadastro de hospitais e para a aquisição do medicamento pelas maternidades: menos de 25% dos mais de 4.000 estabelecimentos com leitos obstétricos recebem o misoprostol32 e frequentemente há atraso na compra pelo Ministério da Saúde e desabastecimento nos hospitais.

10. A CURETAGEM UTERINA É UM TRATAMENTO OBSOLETO E NÃO É RECOMENDADA PARA O ABORTO DE PRIMEIRO TRIMESTRE 

Informação falsa e omissão de informação: “A conduta cirúrgica inclui a aspiração manual ou elétrica, com ou sem dilatação cervical, e a curetagem uterina. […] A perfuração uterina e a infecção são outras possíveis complicações cirúrgicas.”

A curetagem uterina é um método obsoleto e não é mais recomendada pela OMS há mais de 10 anos,34 devendo ser substituída pela aspiração manual intrauterina (AMIU)/aspiração elétrica ou pelo tratamento medicamentoso, quando a AMIU não está disponível.35 Nesse trecho do documento, mais uma vez, o Ministério da Saúde dissemina informação desatualizada e presta um desserviço à formação dos profissionais de saúde brasileiros.

O documento do Ministério da Saúde ainda omite que complicações sérias que requerem internação após um aborto induzido por AMIU são raras (menos do que 0,1%) e que complicações que não requerem internação (infecção, laceração do colo uterino, perfuração uterina, por exemplo) ocorrem em menos de 1% dos procedimentos.

11. NÃO SE RECOMENDA A ADMINISTRAÇÃO DE IMUNOGLOBULINA ANTI-D ANTES DA 12ª SEMANA DE GESTAÇÃO 

Informação falsa: “Recomenda-se a prescrição da imunoglobulina anti-D, na dose de 300 mcg, independentemente da idade gestacional, nos casos de abortamento.”

Há mais de 10 anos, a OMS já recomendava a diminuição da dose de imunoglobulina anti-D para 50 mcg em gravidezes com menos de 12 semanas e não recomendava a determinação do fator Rh e a prescrição de imunoglobulina anti-D como rotina em gravidezes com menos de nove semanas.37 Em seu mais recente documento, a OMS não recomenda a administração de imunoglobulina anti-D em gravidezes com menos de 12 semanas.34 World Health Organization (WHO). Safe abortion: technical and policy guildeline for health systems. 2nd ed. Geveva: WHO, 2012. ISBN 978 92 4 154843 4.

12. O MÉTODO ANTICONCEPCIONAL DE ESCOLHA DA MULHER PODE SER INICIADO NO PRIMEIRO DIA DO TRATAMENTO MEDICAMENTOSO OU CIRÚRGICO E EM QUALQUER DIA DO CICLO MENSTRUAL

Informação falsa: “No caso do DIU, deve-se oferecer a inserção no fim do esvaziamento uterino (AMIU ou curetagem) nas mulheres sem nenhum sinal ou suspeita de infecção, na alta hospitalar ou no retorno ao hospital ou à unidade de saúde dentro dos primeiros 15 dias pós-abortamento ou logo depois da primeira menstruação após o esvaziamento. O injetável mensal ou trimestral pode ser administrado entre o dia do esvaziamento e o 5º dia pós-abortamento, da mesma forma que o anticoncepcional hormonal oral.”

Qualquer método contraceptivo (dispositivos intrauterinos, implantes, hormonais orais ou injetáveis) pode ser iniciado no primeiro dia do tratamento medicamentoso ou cirúrgico39 e em qualquer dia do ciclo menstrual (não apenas até o 5º dia ou logo depois da menstruação), desde que haja certeza de que a pessoa não esteja grávida. Essa abordagem é conhecida como contracepção de início rápido e tem a vantagem de reduzir o tempo durante o qual a pessoa possa estar em risco de uma gravidez não planejada por estar sem uso de algum método contraceptivo e evita barreiras e custos relacionados ao retorno para iniciar um método que requer presença no serviço de saúde. Nessa abordagem, o profissional de saúde pode ter certeza da ausência de gravidez se a pessoa40:

  • não teve relação sexual desde o início de seu último ciclo menstrual, parto, aborto espontâneo ou induzido, gravidez ectópica ou evacuação uterina por doença trofoblástica gestacional;
  • está em uso correto e consistente de um método contraceptivo confiável;
  • está dentro dos cinco primeiros dias de seu ciclo menstrual;
  • encontra-se dentro dos 21 dias de pós-parto e não está amamentando;
  • está amamentando exclusivamente, amenorreica (sem menstruação) e antes de 6 meses de pós-parto;
  • encontra-se dentro dos cinco dias após aborto espontâneo ou induzido, gravidez ectópica ou evacuação uterina por doença trofoblástica gestacional;
  • não teve relação sexual por mais de 21 dias e tem um teste de gravidez urinário

Quando o método contraceptivo é iniciado fora dos primeiros dias do ciclo menstrual, um método adicional (preservativos ou abstinência) deve ser prescrito por dois a nove dias (sete dias para a maioria dos métodos).

13. UMA A CADA TRÊS MORTES MATERNAS SÃO DECORRENTES DE CAUSAS OBSTÉTRICAS INDIRETAS, OU SEJA, POR DOENÇAS MATERNAS GRAVES

Informação falsa: “É importante ressaltar que as condições que realmente colocam em risco a vida da mulher que justifiquem um aborto são poucas, não cabendo um alargamento sem motivos técnicos”.

As mortes maternas de causas obstétricas indiretas resultam de doenças preexistentes à gestação ou que se desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez. Essas foram responsáveis por 29% das mortes maternas no período de 1996 a 2018. Nesse período, destacaram-se as mortes por doenças do aparelho circulatório e respiratório, por AIDS e por doenças infecciosas e parasitárias.41 Em 2019, apesar da razão de mortalidade materna no Brasil em declínio, esse número já era considerado inaceitável: 58 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2021, com a pandemia da COVID-19, a mortalidade materna chegou a 107 mortes a cada 100 mil nascidos vivos.

A mortalidade materna é uma das mais graves violações de Direitos Humanos, por ser uma tragédia evitável na maioria dos casos. A limitação da indicacão do aborto terapêutico a uma situação “in extremis”, como a pasta da saúde tenta dissuadir nesse documento, resulta em decidir pelo tratamento em condições clínicas gravíssimas, quando a decisão para interromper a gestação já não consegue salvar a vida da gestante.

14. A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA TEM LIMITES ÉTICOS PARA SUA INVOCAÇÃO 

Informação falsa: “O médico tem o total direito de objeção de consciência para realizar um aborto. Isso não pode ocorrer se houver iminente risco de morte. Nas outras situações previstas em lei, o estabelecimento de saúde tem a obrigação de disponibilizar um médico sem objeção de consciência.

Segundo o Código de Ética Médica brasileiro, “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

Pode-se apreender que a objeção de consciência não é um direito absoluto ou total, como quer fazer entender o documento do Ministério da Saúde. O documento do Ministério da Saúde omite que o médico não pode recusar-se a cumprir seu dever profissional quando não há outro médico que possa prestar o cuidado.

Entre ginecologistas e obstetras, a alegação de objeção de consciência para o cuidado ao aborto pode ser ainda mais grave, já que o aborto é o segundo procedimento obstétrico mais prevalente na vida profissional desses especialistas. Para a FIGO, “o dever primário de consciência de ginecologistas- obstetras […] é, em todos os momentos, tratar ou beneficiar e prevenir prejuízos a pacientes pelas quais são responsáveis. Qualquer objeção de consciência ao tratamento da paciente é secundária a esse dever

A própria OMS, em suas diretrizes mais recentes (citadas no documento do Ministério da Saúde), afirma que a objeção de consciência torna-se indefensável se constituir uma barreira para o acesso ao aborto.

O documento do Ministério da Saúde também omite que o médico não pode recusar-se a prestar cuidados relacionados ao aborto quando sua recusa trouxer danos à saúde da paciente. E, aqui, deve-se ressaltar que o conceito de saúde não se restringe à saúde física, mas “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de doença” (aliás, esse é o conceito de saúde da OMS desde 1946).

Considerações Finais 

O documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” publicado pelo Ministério da Saúde contém inúmeros erros conceituais, condutas obsoletas, sem respaldo de evidências científicas atuais, e recomendações equivocadas que visam criminalizar e torturar meninas, mulheres e profissionais de saúde que delas cuidam nas situações de aborto legal no Brasil. O texto é visivelmente ideológico, com forte carga anti-direitos humanos, e propaga desinformação.

Por isso, solicitamos que o documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” seja revogado e imediatamente retirado da plataforma virtual da Biblioteca Virtual em Saúde, por induzir os profissionais a práticas obsoletas, não recomendadas e criar uma ambiência ameaçadora contra as meninas e mulheres brasileiras.

Em 14 de junho de 2022,

Rede Médica pelo Direito de Decidir – Global Doctors for Choice Brazil

Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras

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