Em nota, CLADEM manifesta preocupação com violação de direitos humanos no caso da menina de 11 anos

22 de junho, 2022

Forçar a gravidez da menina de 11 anos é tortura: aborto, necessário, legal e seguro, é direito de todas as meninas e mulheres se não há outro meio de salvar a vida ou se a gravidez resulta de violência sexual.
O CLADEM Brasil, juntamente com toda a rede CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM), presente em 14 países da América Latina e do Caribe, – manifesta solidariedade e preocupação com a vida e a saúde da menina de 11 anos de idade, vítima de violência sexual, que foi afastada do convívio com sua mãe e teve o procedimento de aborto legal negado até o momento. A situação configura uma grave violação aos direitos humanos, em particular de crianças que são sujeitas de direitos em peculiar processo de desenvolvimento biopsicossocial, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal Brasileira e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto devem ter acesso à informação segura e apropriada à sua fase de maturação psicológica e emocional, no que se refere aos seus direitos sexuais e reprodutivos, educação integral em sexualidade, e, inclusive, direito a informação e acesso ao aborto legal e seguro nos casos previstos em lei: violência sexual e risco de vida para a gestante.
Segundo informações publicadas pela imprensa na última segunda-feira, 20 de junho de 2022, uma criança foi retirada do convívio familiar ainda com 10 anos de idade para dificultar ou inviabilizar a realização do aborto legal, direito de todas as meninas e mulheres no Brasil desde a aprovação do Código Penal em 1940. O abrigamento da vítima transfere a responsabilidade pelos cuidados com crianças e adolescentes, e decisão sobre suas vidas, ao Estado, possibilitando maior controle e monitoramento de suas ações. A medida é excepcional, principalmente quando a criança possui casa e uma mãe, que é sua representante legal. No presente caso, a menina, além da violência sexual, também foi submetida a sucessivos atos que caracterizam violência institucional e violação de direitos humanos: seu direito ao aborto, e por consequência à saúde sexual e reprodutiva e à saúde integral, foi condicionado pelo sistema de saúde pública à prévia autorização judicial; seu direito de viver sem violência foi negligenciado; seu direito de ser escutada e sua livre opinião foram subtraídos por quem deveria protegê-la; sua autonomia foi negada pelo sistema de justiça que a constrangeu, sem observar o devido processo legal, para não realizar o aborto previsto em lei; sua liberdade de decidir sobre a gestação e maternidade foi subtraída pelo próprio sistema de proteção à criança e adolescente. Efetivamente, não foi protegida e não recebeu tratamento digno e respeitoso.
Nesta lamentável negação de direitos em Santa Catarina, foram divulgados áudios em que se registra a magistrada do processo questionando a menina como se ela fosse uma mulher adulta e tivesse uma relação sexual consentida, o que torna o episódio uma violação ao reconhecimento da criança como sujeito de direitos, e um caso de violência institucional e de gênero contra meninas: “Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer?”, “Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?”. Magistrada que na sequência afirma para a mãe da criança gestante: “Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, como se uma criança tivesse a obrigação de gestar e parir para “ressignificar” todos os riscos – inclusive de morrer – e sofrimento. Restou evidente que a promotora e a juíza buscaram induzir a menina a manter a gestação com o fim de garantir a viabilidade do feto para fins de adoção, sendo que em um dos trechos da audiência, inclusive, ambas autoridades abordam etapas do desenvolvimento da formação fetal para saber se a menina “suportaria ficar [com o feto] mais um pouquinho,” nas palavras da juíza, como se a menina de 10 anos não fosse sujeito de direitos, vítima de gravíssimas violações a sua integridade física e mental, mas apenas um veículo para garantir a gestação de um feto destinado à adoção e à felicidade de outra família. Ou seja: a vida e a condição concreta da menina como pessoa importam menos para estas representantes do Estado do que a vida em gestação, assim desconsiderando os atos de repugnante violência sexual continuada.
Em meio a este conturbado período com múltiplos procedimentos jurídicos, a menina completou 11 anos de idade e durante a audiência ouviu da Magistrada as seguintes sugestões: “Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?”, “Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?” Nestes trechos agora transcritos observa-se como a Magistrada busca proteger os direitos do feto, ignorando e desrespeitando os direitos fundamentais da criança que está em vias de se tornar mãe. A sua situação de vítima de estupro foi ignorada, assim como a sua imaturidade física e fragilidade emocional, a dificuldade de compreender a situação da gravidez e maternidade, na sua complexa dimensão e o que significa tal fato para a sua vida, a revitimização a qual tem sido exposta com a negativa do procedimento de aborto legal. Igualmente, a sua retirada forçada do contato com a sua mãe e “acolhimento” em abrigo, inobstante os pedidos desesperados de sua mãe para poder cuidar de sua filha, constituem-se em violência contra os direitos da criança e do adolescente, haja vista que a suspensão ou remoção do poder familiar e o abrigamento são medidas extremas e só devem ser adotadas como última alternativa. Nesse caso, a mãe da vítima buscou ativamente cuidar de sua filha e resguardar seus direitos a uma vida livre de violências.
Esse caso evidencia que a tortura não se restringe ao episódio da audiência, registrado em vídeo, por isso a urgência em buscar todos os meios para assegurar o aborto legal e seguro para a criança, agora com 11 anos, em Santa Catarina, no sentido de acolher quem teve a experiência da violência sexual sem que se possa admitir que ingresse em um novo ciclo de violência perpetrada por autoridades governamentais, jurídicas e médicas que acabam por interferir na infância, em seu projeto de vida e em seu desenvolvimento de forma brutal. O caso da menina de 11 anos representa uma prática nociva para o interesse da criança, princípio da proteção integral e autonomia progressiva. Deve cessar! Necessita de reparação! Não pode se repetir!
De acordo com a lei brasileira, a gravidez em decorrência de estupro, bem como em caso de risco à vida da gestante, permite o aborto necessário e legal, independentemente de autorização judicial ou registro de boletim de ocorrência. Importante é lembrar que entre a lei e a prática, há enormes obstáculos para que meninas e mulheres exerçam plenamente seus direitos sexuais e reprodutivos e que a situação desta menina, lamentavelmente, não é exceção, principalmente quando negras, indígenas, da periferia ou pobres. Sabe-se que boa parte dos casos de violência sexual, em especial perpetrados contra meninas ou familiares, são subnotificados; e que o real acesso aos serviços de aborto no país, legal e seguro, tendem a se restringir a grandes centros urbanos e com maiores redes de assistência e saúde. Assim, não são raras as situações em que meninas se vêem obrigadas a manter gestações indesejadas e forçadas – não procuradas e não consentidas, resultado de relações violentas e tenham danos psíquicos.
Em agosto de 2020, outra menina, com idade semelhante no Espirito Santo, obteve autorização judicial para a realização do aborto legal e seguro, mas teve dificuldade no acesso ao serviço de saúde. Igualmente, em 2009, após muita luta, uma menina de 9 anos de Alagoinha, Pernambuco, vítima de estupro e grávida de gêmeos, obteve seu acesso ao direito ao aborto necessário garantido. Ambas sofreram ataques de grupos fundamentalistas e anti direitos humanos das mulheres. Todos esses casos de crianças grávidas, com suas especificidades, repetem um padrão já denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2015, no caso Niña Mainumby, sob a alegação de que obrigar uma criança, que está em fase de desenvolvimento, a levar a termo uma gravidez, ser mãe e criar um bebê deve ser considerado tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante, conforme o caso, nos termos da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (artigo 1) e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 7). No caso Niña Mainumby vs. Paraguay, a CIDH, considerando a situação de gravidade, urgência e irreparabilidade dos danos, solicitou que o Estado do Paraguai proteja a vida e a integridade pessoal da menina; que assegure que os direitos da menina estejam representados e assegurados em todas as decisões em matéria de saúde que a afetem, inclusive o direito a ser informada e a participar das decisões que afetem a sua saúde de acordo com sua idade de maturidade; adotar todas as medidas que seja necessárias para que tenha apoio técnico e familiar para proteger de modo integral os seus direitos.
Nesse sentido, recente pesquisa realizada por UNFPA e CLADEM – Violencia sexual hacia niñas, adolescentes e mujeres jovenes: Sistematización de prácticas prometedoras de atención y prevención em América Latina el Caribe, evidencia a relação entre as diferentes dimensões da violência feminicida e estruturas desiguais e patriarcais, bem como sua conexão com feminicídio/feminicídio, desaparecimento, suicídio, falta de acesso à interrupção legal da gravidez e óbito materno. Em outras palavras, mesmo hipóteses de aborto legal podem significar a morte de uma menina quando essa são levadas para redes inseguras, ou quando elas proseguem com a gestação sem condições físicas ou psíquicas.
Ante a este cenário de múltiplas violações de direitos e desrespeito a dignidade sexual de meninas e mulheres, do qual a situação desta criança em Santa Catarina que evidencia a violência de gênero institucionalizada no Brasil e que exemplifica de forma contundente o tratamento cruel, desumano e degradante a que estão submetidas nossas meninas, Entendemos que:
– É urgente que se oportunize o imediato acesso ao serviço de aborto necessário, legal e seguro, para a menina de 11 anos, como um direito humano e um dever de todos de lhe assegurar os meios para realiza-lo, bem como que se proteja a criança de qualquer impedimento ou obstáculo ou ato de hostilidade de quem quer que seja;
– É direito acompanhamento médico e psicológico para a menina e seus familiares, em todas as etapas do acolhimento após violência sexual e pelo tempo que se faça necessário para processamento do trauma sofrido;
– É necessária a investigação e apuração das responsabilidades criminais do(s) responsável(eis) pela violência sexual;
– É imperiosa a investigação e responsabilização, célere, rigorosa e efetiva, de todas as autoridades e agentes do Estado que, por ação ou omissão, contribuíram para que a menina não tivesse acesso ao aborto necessário, legal e seguro;
– Deve ser rechaçada a tentativa e a criminalização da mãe da menina e incompatível com a normativa internacional dos direitos humanos, especialmente quando o atual governo nega e obstaculiza o direito à educação em gênero e sexualidade nas escolas;
– Após o afastamento imediato da juíza e da promotora atuantes no caso, deve se considerar os procedimentos administrativos com investigação, com perspectiva de gênero, e sua adequada responsabilização por:
– não conceder e assegurar o direito ao aborto legal e seguro da menina de 11 anos, já garantido na legislação brasileira desde 1940, agindo, portanto, contra legem;
– pela prática de violência institucional ao coagir a menina de 11 anos a não realizar o aborto, bem como ao retirá-la da guarda e tutela de sua mãe e a encaminhando a instituição de abrigamento;
– ignorar as violações de direito a que a menina foi submetida, reforçando a sua situação de vulnerabilidade com o objetivo de salvaguardar a vida do feto a ser dado em adoção;
– ofender os princípios de laicidade e imparcialidade que asseguram a efetividade do Estado Democrático de Direito;
– O Estado deve garantir apoio financeiro para que mãe e filha, bem como segurança física e pessoal para que possam seguir suas vidas protegidas da opinião pública, assédio e importunação de terceiros;
– O Estado deve indenizar a menina e sua mãe pelos danos morais e materiais decorrentes das múltiplas violações de direitos a que foi submetida;
– É necessária a elaboração, publicação e oferta de treinamento aos profissionais de saúde em todos os Estados e municípios brasileiros de um protocolo de atenção ao aborto, necessário, legal e seguro, para meninas vítimas de violência sexual menores de 15 anos de idade, com base nos estándares de direitos humanos e na Guia de Referência da OMS de 2022; tendo em vista que as normas técnicas atualmente em vigor não protegem adequadamente esse grupo populacional, retardando o adequado atendimento à saúde dessas meninas levando ao aborto com avançada idade gestacional, aumentando-se os riscos à saúde e vida dessas meninas-mães;
– É imprescindível a formação e treinamento de todos os profissionais do direito, em especial aqueles que integram o Judiciário e o Ministério Público em direitos humanos das mulheres e meninas, com foco no julgamento com perspectiva de gênero aplicados a casos de aborto legal, seguro e necessário.
– Nenhum direito a menos!
Brasil, 21 de junho de 2022
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