(O Estado de S. Paulo) O jurista Wálter Maierovitch escreve sobre o funeral do compositor italiano Lucio Dalla, prestigiado por 30 mil pessoas, em que seu companheiro teve de passar por ‘amigo da família’. Leia na íntegra:
A mídia acaba de revelar dois episódios discriminatórios, ambos disfarçados com tinta de matriz farisaica. Eles servem para demonstrar o avanço do fenômeno representado pela homofobia e a dupla moral fortemente presente em Estados ocidentais laicos de Constituições democráticas que, no elenco das garantias fundamentais, afirmam a igualdade e proíbem a discriminação derivada da orientação sexual. Os fatos consumarem-se nas cidades de Bolonha e São Paulo, na última semana de fevereiro e na primeira de março.
O de Bolonha deveu-se à exigência de “silêncio obsequioso” para abrigar, na gótica Basílica de São Petrônio, a câmara ardente do compositor, cantor, poeta e ensaísta Lucio Dalla. Quanto à incivilidade, restou comandada pelo conselho representativo do centenário Club Athletico Paulistano (CAP) e lesou um casal de médicos homossexuais, Ricardo Tapajós e Mário Warde Filho. Ao dar prevalência ao estatuto social, o CAP derrogou a Constituição republicana de 1988 e, de quebra, desprezou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, legitimamente, é o guardião da nossa Lei Maior.
Essa deliberação paulistana surpreende. O clube conta no seu quadro associativo com destacados defensores do Estado de Direito. Mais ainda, contou, num passado recente, com associados que lutaram heroicamente pela prevalência constitucional. Refiro-me à Revolução de 1932, o maior movimento cívico da história deste Estado, com 934 mortos em batalha. Esses antigos associados, acusados à época de separatistas pelos chamados “aliancistas” e membros do então Partido Democrático de São Paulo, devem estar se revirando de vergonha nas suas covas em face da recente decisão de afrontar nossa Lei Magna. É de se lembrar, ainda, que o CAP sempre mostra com orgulho, nas suas publicações e murais, a foto de Washington Luís passeando pela antiga piscina do clube. E o ex-presidente acabou deposto por golpe liderado por Vargas, que suspendeu a vigência da Constituição.
Lucio Dalla faleceu durante uma turnê em Montreux. Não deixou testamento, mas concluía – com o advogado Eugenio D’Andrea, o manager Bruno Sconocchia e o convivente Marco Alemanno – o projeto para dar vida a uma fundação que seria um “laboratório para descobrir, preparar e lançar novos talentos”. Dalla mantinha, como era notório, uma relação afetiva de mais de dez anos com Marco Alemanno, de 32 anos, ator, autor e diretor teatral. Alemanno participava de todos os espetáculos e concertos de Dalla e, nas gravações, era quem declamava. Na residência de Dalla destacava-se o quadro do famoso pintor Adriano Pisa mostrando Dalla e Alemanno a cantar com um crucifixo ao fundo e luminosidade particular, lembrando o grande Caravaggio.
Dalla tinha fé cristã. Vivia, como gostava de dizer, “in mezzo alla gente”. Era visto nos bares, restaurantes e em igrejas a orar. Era devoto do Padre Pio, considerado falso taumaturgo por João XXIII, mas já conduzido à glória dos altares como santo.
À Igreja interessava patrocinar o velório de Dalla, e 30 mil pessoas passaram pela basílica para o último adeus. Interessava a ponto de abrir exceção diante das rígidas proibições da quaresma, quando santos são cobertos com panos roxos e celebrações suspensas. Exceção aberta, exigências eclesiásticas restaram impostas, em especial o silêncio sobre a união estável Dalla-Alemanno. Também não se pôde tocar as músicas de Dalla: num dos seus sucessos, Caro Amico ti Scrivo, consta que “cada um fará amor com quem quiser”. Em Ciao a te, aparece “ciao a te e a tuo figlio finocchio” (gay). Outra exigência foi Alemanno passar como amigo da família. Dessa forma teve permissão para participar e, emocionado, leu a poesia Le Rondine (As Andorinhas), de autoria de Dalla.
A hipocrisia acabou desmontada pela jornalista independente Lucia Annunziata, que já presidiu a RAI, TV estatal. Disse Annunziata que os funerais representavam um dos exemplos fortes do que significa ser homossexual numa Itália sob influência do outro lado do Tibre, ou seja, da Santa Sé: “Enterra-se com rito católico desde que não se propale o fato de o falecido ter sido gay”. Logo depois do desabafo de Annunziata, feito no programa In ½ Ora, líder de audiência, falou a deputada democrata Paola Concia, que se centrou na ambiguidade moral derivada da desigualdade de tratamento: “Fosse um heterossexual, esposa, amante e filhos estariam defronte ao altar consagrado”. Para Franco Grillini, histórico líder gay italiano e deputado na Emilia-Romagna pelo partido Itália dos Valores, “exigiu-se hipocritamente o silêncio sobre Marco Alemanno”.
A propósito da intolerância à homofobia, tempos atrás considerada doença, o papa Ratzinger mantém a visão fundamentalista de exclusão de anteriores pontificados, mas há sempre possibilidade de exceções abertas às celebridades. No Brasil, esse caminho obscurantista é trilhado também pelos evangélicos, que acabaram de receber o Ministério da Pesca para refrear o fanatismo, embora continuem a querer do governo federal postos psiquiátricos para reversão da orientação sexual considerada pecaminosa.
No caso do médico Tapajós, que não obteve sucesso na tentativa junto ao CAP de colocar como seus dependentes o companheiro e a filha deste, o juiz Zarvos Varellis, ao decidir a lide processual instaurada em razão do conflito de interesses, lembrou que o STF reconhece como entidade familiar, à luz da Constituição, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para o CAP, onde se quer que o estatuto prevaleça à Constituição, união estável, só entre homem e mulher. Daí estar apelando da decisão de procedência da ação, numa litigância homofóbica e sustentada, com leguleio próprio de rábulas de porta de cadeia de periferia, em cláusula estatutária refratária à Constituição.
Não faltarão aos conselheiros que sufragaram a interpretação pétrea as bênçãos de Ratzinger e da bancada evangélica do nosso Parlamento. A respeito, convém recordar o observado pelo ilustre desembargador Francisco de Paula Sena Rebouças, na sua recém-lançada obra Uma República Provincial (Editora. Manole): “Somos herdeiros de uma cultura autocrática que, a partir do absolutismo monárquico, passou pelo mandonismo do senhor das terras e dos escravos, pela prepotência das botas e seus maquiavélicos tacões”.
*Wálter Maierovitch é presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, vice-presidente do Centro de Integração empresa-escola (CIEE) e assessor internacional pra União Europeia
Acesse em pdf: ‘Silêncio obsequioso’, por Wálter Maierovitch (O Estado de S. Paulo – 11/03/2012)