Em março deste ano, o Observatório de Favelas lançou a pesquisa Violência contra mulheres e letalidade feminina no Rio de Janeiro. Para compreender a dimensão desse fenômeno no estado, o estudo envolveu a combinação de diferentes fontes e recursos metodológicos: pesquisa documental, análise de dados públicos, monitoramento de notícias sobre violência letal contra mulheres veiculadas em quatro jornais de grande circulação estadual, e a realização de entrevistas com integrantes da rede de assistência e atendimento no enfrentamento à violência contra as mulheres. A pesquisa analisou dados de violências físicas, sexuais e psicológicas contra mulheres registrados pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) no período de 2015 a 2020.
Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, Thais Gomes, coordenadora executiva do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, faz uma análise dos dados levantados pela pesquisa e destaca a importância de se visibilizarem outras formas de violência de gênero, como a violência policial. Thais Gomes é doutoranda e mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ (PPGSS- UFRJ).
Para a coleta de dados da pesquisa vocês utilizam uma combinação de diferentes fontes e recursos. Você poderia nos contar como foi realizado esse trabalho e qual é a importância desse tipo de metodologia para lidar com o fenômeno da violência de gênero?
Thais Gomes: O objetivo maior da pesquisa foi olhar para as dinâmicas de violência contra as mulheres – e nós estamos compreendendo nesse estudo mulheres cis e mulheres trans do Rio de Janeiro – e os impactos da pandemia de Covid-19 sobre as políticas de prevenção e a rede de proteção às mulheres em situação de violência. Então, a violência contra mulheres é uma violência muito comum, que acontece em qualquer espaço da cidade, com qualquer mulher e que tem diferentes subnotificações. Mas, quando a gente olha para os diferentes recursos metodológicos, temos diferentes respostas sobre essas subnotificações — elas não são rígidas e têm vários aspectos. Para conseguir dar conta dessas lacunas de dados subnotificados, optamos por uma combinação metodológica ampla, em que pudéssemos entender o fenômeno da violência. Como também tínhamos uma perspectiva de olhar para a rede de cuidado, de proteção a essas mulheres em situação de violência, fizemos ainda uma escuta de quem está na linha de frente dessa atuação. Então, vamos olhar a incidência de casos de violência contra mulheres a partir de uma pesquisa documental, olhar o que temos de literatura até hoje sobre violência contra mulheres, olhar para os dados públicos para entender como essa violência se manifesta quantitativamente, olhar para o monitoramento de notícias na imprensa sobre esse fenômeno e também escutar quem atua na atenção.
No caso do monitoramento de notícias, a partir de uma plataforma de clipagem, fizemos um mapeamento das matérias veiculadas de 2020 a 2021, a partir de palavras chaves. Já para os dados, olhamos para um período maior, de 2015 a 2020, tendo como marco a implementação da Lei do Feminicídio em 2015, e construímos, então, uma série histórica para olhar como essa violência foi se manifestando de forma quantitativa. E fizemos essa combinação metodológica porque entendemos que esse dado quantitativo, apesar de dizer muito do problema, não humaniza as vítimas, pois parece que o sujeito não tem rosto. Então, por isso, essa combinação: para contar histórias de mulheres reais que estão no nosso cotidiano, que podem ser qualquer uma de nós. A gente aposta muito nessa perspectiva para tratar de violência.
A pesquisa aponta que, embora os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro coloquem em evidência que as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no estado, esses casos não tiveram repercussão equivalente na imprensa. Na sua opinião, essa invisibilidade contribui para que se ignore a maior vulnerabilidade de mulheres negras e para que não se busquem soluções para a violência racial? Como você avalia o papel da imprensa na cobertura de casos de feminicídio?
Thais Gomes: Com certeza, essa invisibilidade que a imprensa dá para as mortes — não só de mulheres negras, como também de mulheres trans — tem uma repercussão fundamentalmente ruim nas percepções que a sociedade de modo geral tem sobre essa violência. E, também, certamente, quanto menos a opinião pública dialoga sobre esse assunto, sobre essas vítimas, menos possibilidades temos de incidir em políticas públicas efetivas. E a gente vê o reflexo disso na própria política. Temos uma política nacional, por exemplo, que reconhece que as mulheres negras são as principais vítimas, não só de feminicídio, mas de violência de modo geral, mas, quando a gente olha para as proposições dentro da política, não há nada que corresponda à realidade dessas mulheres. Avaliamos, inclusive, que isso contribui para um imaginário muito restrito sobre violência; porque, quando olhamos para os dados da imprensa, há uma priorização muito contundente sobre a violência doméstica. E a violência doméstica não é a única forma de violência contra a mulher. Acho que estamos em um ano muito emblemático em relação a isso. E temos a percepção de que os casos que não são de violência doméstica, mas que ganham expressividade nos canais de imprensa, têm um recorte racial muito definido, que são as mulheres brancas. Não estou querendo dizer que a violência contra mulheres brancas não tem importância, muito pelo contrário, só que, quando a gente vai olhar para os dados, a violência contra as mulheres negras está crescendo e a violência contra as mulheres brancas, reduzindo. Isso significa que você tem aí uma confluência de mecanismos que tem conseguido garantir a proteção de mulheres brancas, mas que não tem conseguido garantir a proteção de mulheres negras.
Na pesquisa foi possível identificar que essa invisibilidade, tanto na imprensa como na produção de dados, também recai sobre a violência que atinge mulheres trans e travestis?
Thais Gomes: Completamente. Quando se fala de mulheres trans há um completo reconhecimento de desumanização dessa população. Primeiro, porque os dados de imprensa não reconhecem essas pessoas como mulheres. Para a busca de matérias, a gente teve até que usar uma série de palavras, inclusive que remetem a termos discriminatórios, para conseguir identificar que mulheres trans foram mortas. Porque a imprensa trata essas mulheres como “ele”, ou com um nome que não é o nome social dela ou o próprio nome que ela adotou na retificação de registro. E, quando a gente vai olhar para os dados oficiais, não se reconhecem essas mulheres porque não existem dados oficiais sobre a população trans — na verdade, não existem dados sobre a população LGBTI de modo geral. Então, chega a ser escandaloso, porque você não reconhece essas pessoas nem em uma perspectiva de política pública, nem em uma perspectiva de construção social.
O estudo aponta que esse destaque maior dado pela imprensa a dinâmicas de violência doméstica e familiar pode limitar a visibilidade de outras violências de gênero, como a violência policial. Na sua opinião, como isso impacta a construção de políticas públicas?
Thais Gomes: No Observatório de Favelas, nossa prioridade, nossa missão, dizemos assim, é sempre trabalhar a partir de favelas e periferias. Então, esse estudo tem um foco muito preciso em olhar para as realidades que atravessam mulheres de favela e periferia. E, quando a gente olha para as violências de gênero, para a violência doméstica, e o que se tem de política já estruturada para lidar com isso, vemos uma política pública, um sistema de proteção muito balizado nos sistemas de justiça e de segurança pública. A Lei Maria da Penha tem 46 artigos, mas quando você vai olhar para a aplicabilidade dela, há um foco muito expressivo em segurança pública. E isso é um problema quando a gente está pensando em mulheres de favela e periferia no Rio de Janeiro. Os territórios de favela no Rio de Janeiro têm uma configuração, de modo geral, que é armada, de controle de grupos armados, com uma série de experiências com a atuação policial, que é muito violenta. Então, as mulheres que vivem nas favelas e nas periferias do Rio de Janeiro, por exemplo, não vão conseguir acessar um serviço de medida protetiva — não vai vir um oficial de justiça até a casa delas. Tem também uma questão de acesso à renda, questões materiais da vida, que não vão possibilitar que essa mulher transite para ir a um órgão do sistema de justiça. E, de um modo geral, ela já tem uma experiência com esse sistema de justiça que está muito conectada a essa realidade de territórios que são violentados. Então, para essas mulheres, uma política pública muito ancorada nas lógicas da justiça e da segurança pública é ineficaz, porque elas não vão conseguir acessar essa política. E é por isso que a gente demarca de uma maneira tão contundente essa diferença de acesso entre mulheres negras e mulheres brancas, que está completamente territorializada.
Com relação à violência policial, quando a pesquisa escuta os equipamentos que estão, em certa medida, localizados em territórios de favelas, e eles são poucos, as profissionais dizem o seguinte: olha, quando uma mulher negra, moradora de favela e periferia, não tem uma experiência direta com a violência policial, no sentido de ser atingida, de um policial desrespeitá-la verbalmente ou cometer uma violência sexual contra ela — porque isso acontece de maneira com muita recorrência no Rio de Janeiro —, há uma outra dimensão da violência que afeta a vida dela. São os filhos, maridos, sobrinhos e netos dessas mulheres que estão sendo mortos pela violência policial. Tem até um trecho da pesquisa que relata que a polícia estava perseguindo um vizinho adolescente, que pula dentro da casa de uma mulher, e aí a polícia executa esse adolescente na varanda da casa dessa pessoa, que estava almoçando. E é ela que tem que limpar o sangue, sabe? É uma experiência de desumanização muito grande. Então, ainda que a violência policial atinja homens prioritariamente, homens jovens e negros, os rebatimentos disso incidem no cotidiano das mulheres. São desafios que as profissionais que atuam em centros de referência, em Casas da Mulher, em equipamentos que trabalham com a perspectiva de criar espaços de convivência e fortalecimento de vínculos, que trabalham com mulheres que vivem em favelas e periferias, vão enfrentar. São desafios de uma violência que, mesmo quando não atinge diretamente o corpo da mulher, tem efeitos no cotidiano que são muitos violentos, inclusive na perspectiva de adoecimento mental.
Falando agora sobre armas de fogo, no estudo vocês apontam que, dos 275 casos de homicídios de mulheres ocorridos em 2020, houve emprego de armas de fogo em 120, ou seja, em quase metade do total de registros. Na sua avaliação, a flexibilização nas políticas de controle de armas de fogo capitaneada pelo governo Bolsonaro ampliou a vulnerabilidade das mulheres?
Thais Gomes: Sem sombra de dúvidas. E essa é uma questão que temos que tocar. Inclusive, tem um outro dado que apareceu quando a gente estava olhando para o mapeamento de imprensa e ouvindo as DEAMs [Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher], que é a participação de profissionais da segurança pública na morte de mulheres, não necessariamente na atuação deles no trabalho, mas nas suas relações interpessoais, sempre com a presença de arma de fogo. Quando vamos olhar para as situações em que isso acontece, com certeza, se a gente não tivesse ali a presença de uma arma de fogo, uma parte significativa dessas violências teria sido evitada. Então, certamente, essas legislações que abrem margem para o acesso à arma de fogo têm alterado essa experiência.
Tem mais algum ponto que você gostaria de destacar?
Thais Gomes: Tem uma questão que acho muito importante trazer e que tem a ver com a situação da rede de atendimento a mulheres, tanto em uma perspectiva de enfrentamento à violência quanto de mecanismos de prevenção, que é a condição dos equipamentos da rede e da empregabilidade das mulheres que trabalham nessa rede. No estado do Rio de Janeiro, temos uma lógica patrimonialista muito forte, muito predatória. E um dado da nossa pesquisa diz respeito ao quanto essa perspectiva patrimonialista na relação política, de trato da máquina pública como negócio pessoal, incide e amplia a violência contra a mulher, sobretudo na perspectiva da violência institucional, que é quando essa mulher vai buscar o serviço para sua proteção e acaba sendo ainda mais violada. Um elemento que os profissionais que trabalham nessa política ressaltam é o quanto as condições de trabalho — de contratação, de ficar à mercê de cargo comissionado, de ser empregado pelo “político A” ou “político B” — impactam diretamente no atendimento das mulheres em situação de violência. Essa lógica interrompe um princípio fundamental da política de enfrentamento, que é a atuação em fluxo: a rede atua em um fluxo contínuo de encaminhamento, de entender que a mulher precisa transitar por diversos serviços, em diferentes perspectivas. Quando você não tem mais uma atuação profissional segura, quando você não tem um profissional que está ali porque é comprometido com aquela política, porque tem uma tradição de atuação nesse campo, você quebra esse fluxo. E quando você quebra esse fluxo, abrem-se novas possibilidades de revitimização e de desistência da mulher em procurar aquela rede, porque ela não confia mais naquele serviço. Então, a instituição é um elemento super importante, porque para além de essa mulher estar sujeita a violências pelo parceiro, pela violência urbana, pela violência sexual, tem um crescente de violência institucional, que é produto dessa forma falha de gerir a política pública. E esse é um tema super importante para conversarmos em um ano eleitoral tão complexo como este que estamos passando.
Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados
Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Saiba mais.