José Henrique Rodrigues Torres lista uma série de argumentos jurídicos que dariam base para excluir o aborto do Código Penal neste segundo e último episódio da edição especial do podcast Prato do Dia sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Um dos principais pensadores sobre a questão do aborto no Brasil no campo jurídico, o recém-empossado desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) José Henrique Rodrigues Torres se debruça há mais de 30 anos na análise do assunto e sustenta que a política de criminalizá-lo é inconstitucional, ao violar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher sob a perspectiva dos direitos humanos. Torres foi entrevistado no último episódio da edição especial do podcast Prato do Dia sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Autor do livro “Aborto e Constituição” e integrante da rede global Doctors For Choice, Torres listou, ao longo da entrevista, uma série de argumentos jurídicos para sustentar a inconstitucionalidade da penalização do aborto. E ressaltou que, mesmo tipificada como conduta criminosa pelo Código Penal, a prática vem sendo realizada em larga escala no país. Pesquisa realizada pelo Anis/Instituto de Bioética em 2018, feita em razão de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta ao Supremo Tribunal Federal, indicou que 1 em cada 5 mulheres de 18 a 39 anos já fez um aborto no Brasil.
Além da evidência de que o aborto vem sendo amplamente praticado, mesmo com a proibição em lei, o desembargador enumerou os princípios jurídicos da subsidiariedade, da alternatividade e da racionalidade para defender a exclusão do aborto do Código Penal, elaborado em 1940. “Estou convencido que esta criminalização é equivocada, injurídica, inconstitucional e, numa expressão jurídica, é inconvencional. Ou seja, viola princípios e preceitos do sistema de proteção dos direitos humanos”, disse Torres.
O aborto está tipificado como crime em três artigos da lei brasileira, incriminando tanto a gestante quanto o terceiro que ajudá-la na prática com penas de detenção ou reclusão. Em duas hipóteses previstas na lei, não há punição: para o aborto realizado para salvar a vida da mulher e para o aborto resultante de estupro, além da hipótese de feto anencéfalo construída por meio de decisão sobre o assunto tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. Para Torres, além de descriminalizar a prática, o país teria que legalizá-la de maneira que as mulheres brasileiras tenham no Sistema Único de Saúde (SUS) a acolhida e a assistência necessárias no caso de gravidez indesejada.
“Não estou aqui fazendo propaganda nem defendendo a prática do abortamento. Não estou dizendo que é certo ou errado, não é isso. Aliás, esse é um grande equívoco quando se discute esse problema. Você é contra o abortamento ou a favor do abortamento? Não façam nunca essa pergunta”, afirma Torres. “Temos que perguntar o seguinte: como é que o Estado com suas políticas públicas enfrenta a questão do abortamento? É essa a pergunta. Se temos uma sociedade que entende que as mulheres não devem fazer o abortamento, então o que nós devemos fazer como sociedade? Não criminalizá-lo e tomar uma série de providências, de atitudes educacionais, sanitárias, para que as mulheres sejam acolhidas, orientadas, assistidas e tenham todo apoio do Estado para que decidam não abortar. E, se resolverem (abortar), que o façam com toda segurança, assistência, cuidado do Estado”, diz.
A criminalização do aborto, segundo Torres, é uma expressão violenta do Estado no Brasil, uma forma de controle sobre a sexualidade das mulheres e põe sobre a cabeça delas uma “espada de Dâmocles”, estabelecendo um horizonte de insegurança que acaba por punir em última instância as mulheres mais vulneráveis em termos socioeconômicos. “As mulheres pobres, as mulheres negras, as mulheres que não têm acesso (a serviços de saúde) são expostas à morte, porque as mulheres que têm condições pagam o abortamento em clínicas seguras e o realizam sem fiscalização nem importunação do Estado”, diz Torres, que admite incômodo com a falta de um debate mais maduro sobre o assunto no país.
Esta edição do Prato do Dia é a segunda parte de um especial sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Além do episódio com o magistrado, que traz uma visão jurídica acerca do tema, foi realizada também uma entrevista com a obstetra Cláudia Garcia Magalhães, da Faculdade de Medicina do campus de Botucatu da Unesp, que expôs a perspectiva médica sobre a matéria.