Em mais um ano de casos que escandalizaram o país, os direitos reprodutivos pouco avançaram. Sob o debate moral e religioso, brasileiras seguem morrendo. Até quando?
“O aparelho genital feminino não pertence à mulher, mas à espécie. A mulher responderá por este depósito, que ela não pode desperdiçar.” Essa frase é do médico carioca Fernando Augusto Ribeiro de Magalhães, nascido em 1878 e considerado um dos pioneiros da obstetrícia no Brasil.
Embora seja retirada de um livro publicado em 1933, Obstetrícia Forense, resume um pensamento presente até hoje quando o assunto é aborto: o de que as únicas funções da mulher são procriação e maternidade. Da religião à medicina, passando pela justiça e a política, tal noção ainda permeia o debate sobre a possibilidade de interromper uma gravidez indesejada.
Mas, sobretudo, essas ideias tiram o foco do que realmente importa: o direito de mulheres decidirem sobre o próprio corpo. “É curioso que debates sobre aborto não giram em torno das mulheres, giram em torno do possível bebê. Mesmo nesses temas [que dizem respeito diretamente aos direitos sexuais e reprodutivos femininos], é difícil as mulheres serem protagonistas do debate”, avalia a advogada e doutora em Direito Constitucional Melina Girardi Fachin, professora associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Isso ficou escancarado em falas como as da juíza Joana Ribeiro Zimmer, que em junho de 2022, negou a uma criança de 11 anos, vítima de estupro e grávida de 22 semanas, o direito de realizar um aborto. “Quanto tempo que você aceitaria ficar com o bebê na tua barriga para gente acabar de formar ele, dar os medicamentos para o pulmãozinho dele ficar maduro para a gente poder fazer essa retirada antecipada do bebê para outra pessoa cuidar se você quiser?”, a magistrada perguntou à menina, em audiência realizada em Santa Catarina no dia 9 de maio de 2022. “Queres escolher algum nome para o bebê?”, continuou, ao que a garota respondeu negativamente com a cabeça.