Ao invés de estar preocupado com proibir procedimentos que a OMS recomenda, CFM deveria estar pensando em como tratar com dignidade e respeito meninas já vítimas de tantas violências
A proposta deste artigo é refletir sobre a resolução editada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe os médicos de realizarem o procedimento da assistolia fetal, método indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o aborto após a vigésima semana de gestação.
A questão da descriminalização do aborto é muito complexa na sociedade brasileira, mas não é sobre isso que quero discutir, e sim sobre um direito garantido pela nossa legislação: o direito ao abortamento legal decorrente de estupro.
Para isso, quero que partamos todos do mesmo ponto, então, vou iniciar com algumas informações. A primeira delas é que o aborto é permitido no Brasil em três situações: perigo de morte para a gestante; gravidez decorrente de estupro; e se o feto é anencéfalo. Assim, pela nossa legislação, toda mulher que foi estuprada e engravidou tem direito de decidir se quer ou não interromper a gestação. A segunda informação é que o nosso Código Penal prevê o crime de estupro de vulnerável, que se configura quando um adulto tem qualquer tipo de relação sexual com alguém menor de 14 anos. Há, nesses casos, uma presunção de violência em razão da idade da vítima. Portanto, toda menina grávida com menos de 14 anos foi estuprada. Uma terceira informação importante – fundamental aliás – é que, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, de todos os registros policiais de estupro em 2022, 61,4% foram contra menores de 13 anos, sendo 86% meninas, na sua maioria entre 10 e 13 anos. Como podem ver, a maior parte das vítimas de estupro no Brasil não é de mulheres, mas de crianças.
O quarto dado, extraído do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, mostra que temos, em média, 44 crianças nascidas de mães adolescentes por hora no Brasil, sendo que, destas, duas têm menos de 14 anos. Se cruzarmos os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública com este do Ministério da Saúde, saberemos que, das quatro meninas com menos de 13 anos estupradas por hora, duas engravidaram.
Dito isso, vou fazer uma afirmação: a resolução do Conselho Federal de Medicina, na prática, vai impedir o aborto legal de boa parte das meninas menores de 14 anos. Explico.
Para além de sabermos que o estupro no Brasil atinge mais meninas do que mulheres, precisamos ter em mente que, em 2022, 72,2% destes estupros aconteceram na residência e em 71,5% dos casos foram praticados por familiares, dos quais 44,4% pais e padrastos. Diante disso, não é difícil de compreender por que apenas 10% desses crimes são denunciados. A proximidade do agressor com a vítima, sua pouca idade e o segredo e vergonha da família geram o silêncio perverso que perpetua esta violência e que, muitas vezes, só se revela quando a menina aparece grávida.