Câmara utiliza projeto nefasto para provocar o governo. Sua rápida tramitação mostra articulação da ultradireita. Mas a resposta foi rápida e clara: passo atrás no direito ao aborto legal é inegociável. Abre-se uma oportunidade de mudanças
O aborto voltou a ser a pauta política principal – e dessa vez o campo progressista conseguiu participar ativamente do debate, apesar de um atropelo inicial da ultradireita. Na semana passada, em votação que durou apenas alguns segundos, a Câmara Federal aprovou a urgência da tramitação do PL 1904, que qualifica a interrupção de gravidez após a 22ª semana de gestação um crime equiparável ao homicídio. Um enorme retrocesso em um país que já está entre os mais restritivos em relação à questão do aborto: por aqui, ele só pode ser realizado em caso de estupro, anencefalia fetal e risco à vida da mãe. Mas não há nada que indique até que período gestacional esse procedimento pode ser realizado, nesses casos – pelo menos até agora.
Se a pauta do aborto é muitas vezes interditada nos debates da esquerda, por ser um tema sensível aos religiosos, o campo da direita vem forçando os limites nos últimos meses. Há uma busca clara de se restringir ainda mais o direito. Há alguns meses, o Conselho Federal de Medicina (CFM), hoje dominado pelo bolsonarismo, emitiu nota técnica que proibia médicos de realizar a chamada assistolia fetal após 22 semanas de gestação – o que, na prática, inviabiliza o aborto. Pelo Brasil, há poucos centros de referência que realizam a interrupção da gravidez em casos onde é permitida – e estão sendo sistematicamente inviabilizados, como é o caso do hospital Vila Nova Cachoeirinha, na cidade de São Paulo.
O avanço, no Congresso, do PL 1904, é mais um degrau nessa ofensiva reacionária. Mas, como se vê nesse caso, não se trata de uma questão puramente moral. Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, escancarou o cinismo da iniciativa ao falar que se tratava de um “teste” para o governo, num gesto de utilitarismo que potencializou revolta de amplos setores sociais, muito além do espectro de movimentos sociais e feministas mais atuantes. Muito rapidamente, a pecha de “PL do Estuprador” pegou.
“Eu acho que nós não podemos mais ficar reféns desse grupo político. Essa é a chance, com a força das mulheres nas ruas, de o governo assumir posições mais firmes”, defendeu Ana Maria Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, em entrevista ao Outra Saúde. Profissional e ativista do SUS de longa data, Ana Costa tem uma história de relevante contribuição na implementação de políticas de saúde para as mulheres no sistema público de saúde. Dessa forma, consegue fazer a crítica médico-sanitária ao caráter irresponsável do projeto enquanto enxerga o movimento político de uma direita que tenta ampliar seu domínio através de pautas moralistas.
“Quando Sóstenes Cavalcante disse que ia ‘testar o Lula’, ele testaria o Lula em quê? Nas políticas sociais que o Lula pretende implementar, no melhor financiamento que nós esperamos que o Lula vá manter a políticas sociais, na nossa pauta de manter a vinculação dos recursos da saúde, de aumentar o financiamento e o orçamento da saúde de forma adequada, justa e suficiente”, explicou.