Médico que é referência na garantia do direito ao aborto no país analisa os últimos ataques da ultradireita. Critica a entidade médica e seu papel nessa situação. E defende a interrupção da gravidez ampla, para que mulheres não sejam presas ou mortas
Olímpio Moraes, médico ginecologista há 38 anos, é diretor do Hospital da Universidade de Pernambuco e seu Centro Integrado de Saúde Amaury Medeiros (Cisam), mais conhecido como Maternidade da Encruzilhada. Sua história recente é de enfrentamento contra a cruzada ultraconservadora da militância antiaborto e dita “pró-vida”. Tal corrente chegou ao comando da política de saúde no país no governo Bolsonaro e foi responsável pela portaria 2165/2020, que recrudescia a legislação do aborto legal e tornava obrigatória a notificação à polícia de procedimentos aprovados clinicamente. E foi na maternidade dirigida por Moraes onde se concluiu o marcante episódio da perseguição comandada pela então ministra dos direitos humanos, Damares Alves, que tentou constranger a realização do aborto legal de uma menina capixaba de 10 anos, poucos dias após a edição da portaria.
A notícia escandalizou o Brasil, mas a política foi mantida até o fim do governo Bolsonaro e o serviço de aborto legal segue alvo da direita, em especial do Conselho Federal de Medicina (CFM). Ao Outra Saúde, Moraes classifica a autarquia como “perigo à sociedade”. Apesar de a portaria ter sido derrubada no início do mandato de Lula, o CFM e conservadores seguem a tentar comer pelas beiradas o direito ao aborto legal, como se viu na nota técnica que suspendia o procedimento de assistolia fetal em gestações superiores a 22 semanas; seguida de apresentação do PL 1904, que equiparava o aborto após esse período a homicídio. O ataque foi derrotado politicamente após massiva manifestação de repulsa da sociedade brasileira, nas redes e ruas.
Nesta entrevista, Olímpio Moraes relembra o episódio em um breve depoimento a respeito daquele domingo de 2020, no qual uma horda de fanáticos religiosos se colocou à frente da Cisam e tentou impedir o procedimento que evitou transformar uma menina de 10 anos em mãe. Para além das bancadas religiosas e suas ideias desconectadas do conhecimento médico-científico, Moraes dirige suas baterias ao CFM.
“O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não têm acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo. Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da Saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica”.
Ao Outra Saúde, Moraes explica por que um contexto de interrupção aparentemente incomum de gravidez tem justificativa médica, num país onde os dados de violações sexuais e partos de crianças de 10 a 14 anos atingem níveis alarmantes. Em vez da prevenção a esta mazela brutal, a direita brasileira e seus movimentos alegadamente favoráveis à vida criam condições para a ampliação das tragédias. A explosão de mortes maternas no governo Bolsonaro serve para ilustrar a cegueira, se não má fé, de tais setores.
“Em alguns estados, suspenderam a vacinação para gestantes e o ministério sob Marcelo Queiroga adiou sem justificativa a vacinação infantil. Graças a isso um lugar como Santa Catarina passou da condição de estado com a menor razão de mortalidade materna no Brasil para um dos maiores na pandemia. O Paraná também, sendo que fora da pandemia a morte materna acontece mais no Nordeste”, afirma Moraes, que lamenta o fato de o Sudeste retroceder neste direito, a exemplo da capital paulista, cujo prefeito bolsonarista Ricardo Nunes sabota o serviço de aborto legal no Hospital de Vila Nova Cachoerinha e persegue profissionais que cumprem o direito previsto em lei.
“A maior parte dos nossos atendimentos são de meninas vulneráveis. E elas não queriam nem a gravidez nem o aborto tardio. Elas são as mais vulneráveis, não podem ser punidas porque na verdade já foram punidas: já sofreram a violência do estupro, da gravidez fruto desse crime, da falta de acesso ao aborto legal, do acesso tardio ao aborto… É assustador”, protesta.
Quanto ao avanço do debate após manifestações de rua e recuo da oposição que, nas palavras do relator do PL 1904, Sóstenes Cavalcante, queria “testar o governo”, Olímpio Moraes é cético, por considerar que tais pautas são sempre as primeiras sacrificadas no altar da governabilidade e seus pactos. “Se não houvesse mobilização, se a gente ficasse calado, o PL 1904 seria aprovado”.
Sobre o direito ao aborto em si, ele é direto: “é tratar como assunto de saúde e suas orientações objetivas, como todos os países desenvolvidos tratam, qualquer país democrático. Só países como El Salvador, Afeganistão, Cazaquistão têm essa visão de que abortamento não é um problema de saúde pública, o problema são as mulheres, que devem ser presas ou mortas. Ninguém quer o aborto, nem a mulher. Quando se trata o aborto como um problema de saúde pública, diminui o aborto. E diminuem as mortes”.