Maioridade da Lei Maria da Penha: da promessa à realidade da proteção, por Fabíola Sucasas Negrão Covas

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Foto: Mídia Ninja

08 de agosto, 2024 Justiça&Cidadania Por Fabíola Sucasas Negrão Covas

Há dezoito anos, em 7 de agosto de 2006, o Brasil deu um passo significativo na luta contra a violência doméstica com a promulgação da Lei Maria da Penha. Essa legislação prometia oferecer proteção eficaz às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, buscando romper o ciclo de agressões que se perpetuavam devido à falta de resposta adequada do sistema judicial. Desde o início, a lei não apenas visava punir os agressores, mas também prevenir a violência e oferecer suporte às vítimas, estabelecendo um marco legal robusto e específico para tratar desse problema complexo.

A violência doméstica e familiar contra a mulher, muitas vezes banalizada e tratada como um problema privado, foi finalmente reconhecida como uma grave violação dos direitos humanos. Em 2006, o cenário era de violência invisibilizada, em que os casos frequentemente não eram reportados ou, quando o eram, não recebiam a devida atenção. A Lei Maria da Penha representou uma mudança de paradigma para o Direito, ao reconhecer que a violência doméstica é uma questão de interesse público que afeta toda a sociedade. Esse tipo de violência pode assumir várias formas, incluindo agressão física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, cada uma impactando profundamente a vida das mulheres e de suas famílias.

De acordo com a 4a edição da pesquisa Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil, todas as formas de violência contra a mulher cresceram 4,5 pontos percentuais recentemente. Houve um aumento considerável nos episódios de violência física, ameaças graves, perseguições e agressões com armas de fogo e facas. Mulheres jovens, separadas e divorciadas são as mais vitimizadas, com taxas de vitimização consideravelmente maiores em comparação com mulheres casadas ou viúvas. A violência, predominantemente cometida por parceiros íntimos, revela uma triste realidade na qual 58% dos agressores são ex-cônjuges, ex-companheiros ou parceiros atuais.

O sistema de Justiça brasileiro enfrenta uma expressiva dificuldade com a alta taxa de congestionamento dos processos de violência doméstica e feminicídio. O tempo médio para a conclusão desses processos é de aproximadamente dois anos e dez meses, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2023, o número de casos pendentes cresceu 15%, ultrapassando um milhão de processos, sendo que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) lidera com 164.383 casos pendentes.

Esse congestionamento é preocupante não apenas porque ameaça a prescrição dos casos, mas também prolonga o sofrimento das vítimas que aguardam por justiça, muitas vezes ainda convivendo com seus agressores. A espera prolongada por uma resolução judicial adequada pode levar a uma reorganização forçada das relações familiares, de modo que a vítima continua a viver em condições de insegurança e pressão emocional.

Desde a sua promulgação, a Lei Maria da Penha passou por diversas alterações diretas e indiretas com o objetivo de aprimorar sua aplicação e oferecer maior proteção às mulheres. Entre as mudanças mais marcantes, sobressai a autonomia das medidas protetivas de urgência, que agora podem ser concedidas independentemente do processo penal e duram até a cessação do risco. Isso permite que as mulheres obtenham proteção imediata sem aguardar o andamento do processo judicial, destacando a importância de sua palavra na avaliação do risco. Além disso, novas tipificações criminais, como violência institucional, violência psicológica e stalking, foram introduzidas para reconhecer e penalizar formas de violência anteriormente não abordadas e já reconhecidas entre os fatores de risco de feminicídio.

Nesse aspecto, celebra-se a exigência da aplicação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) durante o primeiro atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar pelo sistema de Justiça, medida que tem como finalidade contribuir para a interrupção dos ciclos de violência e a prevenção de feminicídios.

A perspectiva de gênero tornou-se um elemento central na reestruturação do sistema de Justiça brasileiro em nome do enfrentamento à discriminação e à violência contra as mulheres, reconhecendo-se a necessidade de adoção de protocolos próprios em seus julgamentos. O Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outras instâncias judiciais têm trabalhado para garantir que os procedimentos judiciais penais sejam justos e sensíveis às questões de gênero. Isso inclui o reconhecimento de que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero, a proibição do uso do argumento da legítima defesa da honra, a proibição de argumentos que questionem o comportamento moral da vítima ou sua experiência sexual. Essas mudanças são fundamentais para evitar a revitimização das mulheres durante os processos judiciais e assegurar que a Justiça seja feita à luz da interseccionalidade, de maneira imparcial e respeitosa.

A Lei Maria da Penha não apenas introduziu novas medidas protetivas e penalidades, mas também impulsionou mudanças estruturais no sistema de Justiça e nas políticas públicas de proteção à mulher. A criação de delegacias especializadas, com equipes treinadas para lidar com casos de violência doméstica e que devam funcionar de modo ininterrupto, é um exemplo de como se busca melhorar o atendimento às vítimas. A destinação de 5% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para ações de enfrentamento à violência contra a mulher é outra medida importante que visa contribuir para o orçamento destinado à implementação das políticas previstas na Lei.

A atenção à dependência econômica e à violência patrimonial também se constituiu como foco relevante. A concessão de auxílio-aluguel, uma medida tradicionalmente de iniciativa da assistência social, foi concorrentemente relegada à judicialização por força de lei. Agora, faz parte do rol de medidas que podem ser adotadas pelo juiz para proteger as mulheres, oferecendo uma alternativa segura e digna para aquelas que precisam deixar suas casas por causa da violência. Essa medida amplia as ferramentas disponíveis para garantir a segurança e a estabilidade das vítimas em situações de vulnerabilidade.

O enfrentamento à cultura patriarcal, em que as desigualdades de gênero, enraizadas, contribuem para o aumento real da violência de gênero, coloca a educação em um lugar de extrema relevância. É imperativo incluir, nos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, conteúdos sobre direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra mulheres, crianças e adolescentes.

Apesar dos avanços legislativos, ainda existem muitos obstáculos a serem enfrentados. A alta taxa de subnotificação, com 61% das mulheres que sofreram violência em 2023 não procurando uma delegacia, indica que muitas vítimas estão em silêncio e ainda não confiam no sistema de Justiça ou não têm acesso a ele. A complexidade dos casos de violência de gênero requer uma abordagem especializada e sensível, que leve em consideração as dinâmicas de poder e controle presentes nessas situações. Não por outro motivo, atribui-se ao efeito backlash – a reação adversa dos agressores diante das denúncias ou da resistência das mulheres – o aumento dos índices de violência contra a mulher.

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