Pesquisa da USP identifica lacunas em processos judiciais que envolvem racismo em contexto de violência doméstica e familiar; ausência de letramento racial é determinante na escuta de relatos
De acordo com levantamento de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 50 mil mulheres sofrem com violência todos os dias, sendo 53,8% dos casos dentro de seus lares. Dessas vítimas, 65,6% são mulheres negras, que, além dos abusos sofridos por seu gênero, ainda sofrem com a violência racial. O desafio é considerar as duas situações conjuntamente nos processos judiciais.
Essa questão foi objeto de análise de Patrícia Oliveira de Carvalho em sua dissertação de mestrado, Insubmissos relatos de mulheres negras: violências raciais em contexto de violência doméstica e familiar e seus desdobramentos judiciais. Advogada formada pela Universidade Salvador (Unifacs), Patrícia se propôs a compreender como a violência racial em contexto de violência doméstica e familiar é configurada na lei.
“A Lei Maria da Penha tem enquadramentos específicos para ser utilizada e a violência racial também possui suas especificidades. Porém, mesmo que aconteça dentro do ambiente doméstico, a violência racial não se aplica no enquadramento da Lei Maria da Penha. Então, judicialmente, como se configura esse tipo de situação? Foi o que busquei analisar”, explica a pesquisadora.
Analisando resultados de pesquisas feitas com defensoras públicas e advogadas, ela percebeu que a violência racial, ainda que presente em contextos de violência doméstica, pode ser pouco percebida. Segundo a pesquisadora, um desdobramento judicial para tratar de casos assim passa pela percepção e proximidade da profissional com a situação racial.
A dissertação de mestrado pela FD foi defendida por Patrícia em novembro de 2023 e contou com a orientação de Gislene Aparecida dos Santos, que é livre docente pela USP e pesquisadora do Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“É um trabalho que tem um grande potencial de contribuição com o campo do direito por apontar a complexidade que esses casos de violência possuem e as lacunas dos processos judiciários”, comenta Gislene sobre a dissertação de Patrícia.
Além de graduada e mestranda em Direito, Patrícia integra a Clínica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM), do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para Inclusão Social (GEPPIS) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA) da Faculdade de Direito (FD), todos da USP.
A influência da representatividade
Em sua pesquisa, Patrícia realizou uma série de entrevistas com sete defensoras públicas e oito advogadas que, em suas atuações, já mobilizaram a Lei Maria da Penha para assessorar mulheres em casos de violência doméstica e familiar.
A pesquisadora solicitou que as 15 entrevistadas declarassem cor e raça com as quais se identificavam. Dentre as sete defensoras públicas, apenas uma se declarou parda, enquanto todas as demais se autodeclararam brancas. Quanto às advogadas, três se declararam brancas, três pardas, uma preta e uma amarela.
Além da autodeclaração, Patrícia solicitou às entrevistadas que também classificassem outras 14 mulheres em uma das categorias de raça/cor, por meio de um formulário composto por fotos. O objetivo dessa etapa foi estabelecer para cada entrevistada quem são as pessoas que elas leem como mulheres negras. Quanto a esse processo de identificação, Patrícia observou que as entrevistadas encontraram dificuldade e incômodo em caracterizar a raça e cor de outras mulheres.
Patrícia questionou as entrevistadas se relatos de violência racial já estiveram presentes em casos de violência doméstica e familiar que tenham trabalhado. As entrevistadas negras afirmaram, enfaticamente, já terem se deparado com casos assim e trouxeram exemplos de relatos; enquanto as que se declararam com brancas no máximo apenas responderam que sim.