Se a Constituição de 1988, ao determinar a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (art. 5º, I), eliminou formalmente do campo jurídico empecilhos à consolidação da paridade de gênero, tal conquista não se tem efetivado no plano concreto. Como anunciou, em março de 2023, o secretário-geral da ONU, António Guterres, serão necessários 300 anos para alcançarmos a igualdade de gênero. Para ele, uma das principais metas para reverter tal quadro desolador é fazer frente ao patriarcado.[1]
Por meio do sistema patriarcal é criada e mantida na sociedade a ideia circulante que sustenta a “natural” aptidão dos homens para o comando, para o destino das coisas privadas e públicas, para as decisões relevantes que envolvem o futuro da nação e que dizem com a sociedade ou a família, por conta de características consideradas a eles inerentes e que são vistas como mais adequadas para as ações de comando. A consequência dessa visão de mundo é percebida (e sentida) pelas mulheres no seu cotidiano e em todas as esferas de sua vida (pública ou privada).
No âmbito do trabalho, por exemplo, observa-se uma perda para as mulheres diretamente ligada à remuneração. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mesmo tendo um nível escolar melhor, as mulheres brasileiras lideram as taxas de desemprego e ganham menos que os homens.[2] E se formos pensar no trabalho invisível das mulheres, outros prejuízos podem ser contabilizados, como mostra estudo da estadunidense Claudia Goldin, vencedora do Prêmio Nobel de Economia de 2023, por suas pesquisas sobre o impacto dos afazeres domésticos para as mulheres que estão no mercado de trabalho. A professora da Universidade de Harvard é a 3ª mulher a vencer a premiação desde 1969.
Os prejuízos causados pelos arranjos da sociedade patriarcal (valorizando o papel tido como masculino e desconsiderando as atividades que são consideradas femininas) são medidos também nos seguintes dados: quase 90% da população mundial tem algum tipo de preconceito contra as mulheres, sendo que 87% das pessoas entrevistadas eram mulheres e 90%, homens. É o que mostra um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), feito em 80 países[3], ao analisar quatro dimensões sobre preconceito de gênero que afeta meninas e mulheres: econômica, educacional, saúde e política. No Brasil, o total de pessoas com ao menos um preconceito contra as mulheres chega a 84,5%. E a principal discriminação refere-se à participação da mulher na política.
Um pequeno avanço a ser compartilhado: houve aumento no número de pessoas entrevistadas sem quaisquer preconceitos com as mulheres: 15,5% atualmente, sendo que em 2012 eram 10,2%.[4]
A desigualdade entre os gêneros conduz a uma outra brutal consequência: a violência de gênero. Tal percepção já se fazia presente na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará -, adotada no ano de 1994, ao prever, em seu preâmbulo, que, “a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”.
Tal equação foi muito bem lembrada no Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídio – Decreto 11.640, de 16 de agosto de 2023, quando, já em seu primeiro artigo, enuncia:
Art. 1º Fica instituído o Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, com o objetivo de prevenir todas as formas de discriminação, misoginia e violência de gênero contra as mulheres por meio da implementação de ações governamentais intersetoriais, da perspectiva de gênero e de suas interseccionalidades.
Parágrafo único. As ações governamentais do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios serão implementadas com vistas a prevenir as mortes violentas de mulheres em razão da desigualdade de gênero e garantir os direitos e o acesso à justiça às mulheres em situação de violência e aos seus familiares. (grifou-se)
Ademais, o Pacto, em seu art. 4º, ao especificar a prevenção primária como um de seus eixos estruturantes, faz referência explícita às relações de igualdade de gênero. Confira-se:
Art. 4º São eixos estruturantes do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios:
I – prevenção primária – ações planejadas para evitar que a violência aconteça e que visem a mudança de atitudes, crenças e comportamentos para eliminar os estereótipos de gênero, promover a cultura de respeito e não tolerância à discriminação, à misoginia e à violência com base no gênero e em suas interseccionalidades, e para construir relações de igualdade de gênero, envolvidas as ações de educação, formal e informal, com a participação de setores da educação, da cultura, do esporte, da comunicação, da saúde, da justiça, da segurança pública, da assistência social, do trabalho e do emprego, dentre outros; (grifou-se)
Os índices de violência contra a mulher são desoladores. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 1.467 casos de feminicídios foram registrados – o maior registro desde a tipificação do crime, em 2015. O relatório traz outros dados preocupantes:
- 255 medidas protetivas de urgência concedidas – crescimento de 26,7%.
- Um estupro a cada 6 minutos no Brasil, sendo 88,2% das vítimas do sexo feminino e 76% do total vulneráveis;
- A média de feminicídios no Brasil é de 1,4 a cada 100 mil mulheres;
- 64,3% das mulheres foram mortas na sua residência;
- Em 63% o assassino é o parceiro íntimo da mulher vítima;
Toda essa violência e desigualdade de gênero (as que foram devidamente estudadas e as que permanecem invisíveis ao público, mas que demandam prejuízos, dores e aflições às mulheres que as vivenciam), além de configurar uma triste realidade, traz consequências também à plasticidade do cérebro das mulheres. É o que mostra um estudo coletivo feito por pesquisadores brasileiros e de todos os cantos do mundo, publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).[5]
Intitulado “A desigualdade de gênero, a nível de país, está associada a diferenças estruturais nos cérebros de mulheres e homens” – na tradução literal para a Língua Portuguesa –, o estudo considerou 139 amostragens de 29 países. Ao todo, foram estudados 4.078 exames de ressonância magnética de mulheres adultas; os homens totalizaram 3.798.
Entre as conclusões está o fato de que, em países em que as mulheres vivenciam mais desigualdades sociais, o córtex cerebral – responsável por funções como pensamento, julgamento e linguagem – das mulheres tem menor espessura quando comparado aos dos homens. Há, portanto, alteração anatômica do sistema límbico.
De conformidade com Ligia Moreiras, “se lembrarmos que um dos principais papéis do sistema límbico é a regulação do comportamento emocional, fica fácil entender o impacto disso: maior experiência de sofrimento emocional e piora no estado de saúde mental nas mulheres”.
Em seu texto, a doutora em Ciências ainda diz que “não é coincidência o fato de que condições patológicas como a depressão e o transtorno de estresse pós-traumático também estejam associados a essas mesmas alterações”. Ela comenta isso após apresentar outro resultado da pesquisa: as regiões cerebrais das mulheres “mais alteradas são aquelas que comandam o desenvolvimento de resiliência à adversidade e que reagem a condições sociais negativas”.
Este estudo é fundamental para compreender os impactos brutais da desigualdade entre homens e mulheres. Nos sinaliza ainda que devemos lutar pelo fim das diferenças de gênero e, consequentemente, nos engajarmos pelo enfrentamento às violências contra as mulheres. Para tanto, faz-se necessário compreender o quanto a manutenção dos papéis de gênero (que prestigiam os homens, em detrimento das mulheres) impulsiona a desigualdade de gênero, constituindo o pano de fundo para a violência estrutural que vitimiza inúmeras mulheres seja no âmbito privado, seja no público. Na lição sempre magistral de Heleieth Saffioti (2004, p. 75),
Efetivamente, a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade para que homens exerçam sua força-potência-dominação contra as mulheres, em detrimento de uma virilidade doce e sensível, portanto mais adequada ao desfrute do prazer. O consentimento social para que homens convertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte, apenas as mulheres, mas também, a eles próprios. A organização social de gênero, baseada na virilidade como força-potência-dominação, permite prever que há um desencontro amoroso marcado entre homens e mulheres.
Ao nos voltarmos os olhos para o feminicídio, uma perspectiva de gênero é capaz de fazer compreender que o seu desencadeamento e desfecho envolvem a desigualdade de gênero, uma vez que o feminicídio apresenta-se como “o culminar de um processo continuado de práticas de dominação e submissão sobre as mulheres, onde, a cada violação de direitos e de ofensa à dignidade, se sucedem outras violações. A este processo corresponde a perda de referenciais na relação entre sujeitos, onde a desigualdade de poder entre eles resulta na submissão reiterada e sistemática e na perda de direitos dos dominados ao ponto da depreciação de seu direito à vida.”[6]
A desigualdade de gênero, portanto, comporta: dominação, discriminação, preconceito, menosprezo, ódio, despeito, represália, opressão, subjugação, subalternidade, sexismo, misoginia, violência reiterada, desumanização, hierarquização, ofensa à dignidade da pessoa humana, restrição de direitos, possessividade, controle etc.[7]
Olhando todo o quadro desenhado acima, uma certeza se impõe: a mudança interna de valores socioculturais é a única chave capaz de levar à erradicação do sistema patriarcal, responsável direto pela opressão feminina/dominação masculina que, por sua vez, é o ingrediente da violência de gênero. O esforço de mudança que alcance cada um pode levar a uma alteração da forma de se (bem) viver em sociedade. E para isso, é necessário compreender que o local mais importante da mulher é no orçamento, com investimentos sérios e substanciosos em políticas públicas voltadas à efetivação da igualdade.
Quanto maior a igualdade entre homens e mulheres (que não é um favor, mas, sim, um direito constitucional e convencional) menor serão os índices de violência de gênero.
Sejamos a mudança que queremos ver no mundo!
Alice Bianchini é doutora em Direito Penal (PUC/SP). Conselheira de notório saber do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM. Vice-Presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ. Coordenadora da Pós-Graduação em Direito das Mulheres www.meucurso.com.br. Coautora, dentre outros, dos seguintes livros: Crimes contra mulheres, Juspodvum, 6ª ed., 2024; Crimes contra crianças e adolescentes, 2ª ed., 2024; Feminismo(s), 2ª ed.,2024 e Manual de Direito Eleitoral e Gênero, 2024. Redes sociais: @professoraalice
[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/03/igualdade-de-genero-precisara-de-300-anos-para-ser-alcancada-diz-secretario-geral-da-onu.shtml#:~:text=Declara%C3%A7%C3%A3o%20abriu%20reuni%C3%A3o%20de%20comiss%C3%A3o,da%20mulher%2C%20em%20Nova%20York&text=O%20secret%C3%A1rio%2Dgeral%20da%20ONU,preciso%20fazer%20frente%20ao%20patriarcado.
[2] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2020/12/4896375-a-busca-pela-equidade-de-genero.html#google_vignette
[3] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/06/12/no-brasil-845percent-das-pessoas-tem-pelo-menos-um-tipo-de-preconceito-contra-mulheres-diz-pesquisa-da-onu.ghtml?fbclid=IwAR2xTSDQc9dhYL2eXvMUUY7tE-EwWNVuzrHOnGO_d6L4PKegZupff9JhJac
[4] Disponível em: https://hdr.undp.org/content/2023-gender-social-norms-index-gsni?_gl=1*1a0q1cq*_ga*MjA2Njc3MTguMTY4NjY2ODE3NA..*_ga_3W7LPK0WP1*MTY4NjY2ODE3My4xLjEuMTY4NjY2ODU5MC41Ny4wLjA.&fbclid=IwAR2UHkZNre3RJGm2gVS4M6poik3HE31AHknC1dEfjOBmMn-RmqOdh1XBIz4#/indicies/GSNI
[5] Disponível em: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2218782120?fbclid=IwAR0y8a5AzF9Bo39kJFnbvwpdGovLrDAASPQT0syspJM6J-TeQpBkvp23S08#:~:text=The%20results%20show%20that%20country,thickness%20of%20the%20right%20hemisphere
[6] SOUSA, Tania Teixeira Laky de. Feminicídio: uma leitura a partir da perspectiva feminista. Ex aequo [online]. 2016, n.34, pp.13-29. ISSN 0874-5560. Disponível em: http://dx.doi.org/https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.02.
[7] Cf. https://www.conjur.com.br/2021-mai-18/bianchini-julgamento-perspectiva-genero-maria-penha