A situação em São Paulo – na cidade e no Estado – está absurda: o acesso ao aborto legal, especialmente nos casos de violência sexual, tem sido impedido ou obstaculizado em vários serviços.
Recebi relatos de algumas pessoas – tanto vítimas de estupro, como pessoas de serviços de saúde – que revelam que vítimas de violência sexual, quando conseguem chegar aos serviços, estão sendo dissuadidas e mesmo constrangidas a manter a gestação, especialmente se a gravidez tiver passado de 22 semanas.
Uma história do ano passado: uma mulher nordestina e negra, vítima de estupro marital, fugiu da violência doméstica em que vivia vindo para São Paulo, e aqui descobriu-se grávida. Buscou atendimento numa UBS, e foi encaminhada para um serviço de referência de aborto legal, no qual a médica insistiu em fazer a gestante vítima de estupro ouvir o coração do “bebê” – quando é ainda um embrião ou um feto – e insistiu que ela poderia ter o filho e depois dar à adoção. Perguntava sobre o “pai da criança” – que era quem a agredia, quem a estuprou, quem ela temia que a matasse – e dizia que ela tinha que contar para ele.
A médica, mesmo sendo uma mulher, foi incapaz de entender, e ao insistir que a vítima esperasse, pensasse melhor, voltasse depois de uma semana, cometia uma nova violação, ao não respeitar a vontade expressa e não perceber o seu desespero com a barriga que crescia. Numa reunião com profissionais de saúde, essa mesma médica afirmou que era contra o aborto, e assim considerava que estava no seu direito insistir diante das pacientes que não abortassem – mas um ou uma profissional que está nesse serviço, tem que saber o que são os direitos das mulheres, inclusive de não ter que levar adiante uma gravidez resultante de uma violação. Adiar o procedimento é uma nova violência, obrigar a mulher a ouvir o coração do feto é mais uma agressão psicológica, manter a gravidez por mais e mais semanas é colocar a paciente em risco – quando no início da gestação, a interrupção pode ser um procedimento muito simples.
Segundo dados oficiais retirados do Sinan NET (Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Data SUS), foram 7.838 notificações de violência sexual na cidade de São Paulo só em 2023. Destes casos, mais de 400 resultaram em gravidez – a maioria, vítimas de violência sexual em suas casas, do parceiro ou de parentes. Essas pessoas deveriam ter acesso rápido e simplificado ao aborto legal. Lembrando que, no início da gravidez, o procedimento é bastante simples e muito seguro.
Ganhou destaque no início deste ano a notícia de que o serviço no Hospital e Maternidade de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, teria sido descontinuado pela prefeitura. Mesmo com as decisões judiciais demandando a reabertura, o serviço ainda não foi retomado – ou seja, a prefeitura não está cumprindo a decisão judicial. Ademais, agora também estão recusando e protelando o procedimento para a gravidez chegar a termo em outros hospitais de São Paulo.
Uma matéria na Folha de S. Paulo traz um novo caso dramático, desta vez de uma jovem universitária de 21 anos que foi vítima de violência sexual do namorado. Seu caso seria de aborto legal: vítima de estupro, tem direito à interrupção da gestão feita de modo seguro. Ela já esteve sete vezes no Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, situado na região do Rio Pequeno, zona oeste. E a cada vez uma nova desculpa é criada para não atendê-la, e mais recentemente ainda lhe disseram que deve ser uma “mãe guerreira”. O que essa matéria não mostra é que estamos vivendo um movimento mais amplo de destruição dos poucos serviços de aborto legal em São Paulo – e não só na cidade de São Paulo, mas em todo o Estado.
Na cidade, a Secretaria Municipal da Saúde vem desmontando de modo paulatino os serviços de aborto legal, com a desculpa de que não tem funcionários, ou que precisa fazer outro serviço no local – como no Vila Nova Cachoeirinha. Algo semelhante está acontecendo em outros locais, como o Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, no Tatuapé, além do Hospital Municipal Prof. Mario Degni, citado na matéria da Folha de S. Paulo. Pessoas que chefiam os serviços de aborto legal revelam em reuniões com profissionais de saúde que são pessoalmente contrárias ao aborto e que não vão atender mais esse tipo de caso. Afirmam publicamente que vão protelar o procedimento até a gestação vir a termo e convencer as mulheres a assumirem a criança ou dar em adoção. As profissionais da saúde que estão comprometidas com os direitos das pessoas violadas estão sendo pressionadas a não comentar essa situação, e temem retaliações.
O caso relatado pela Folha é mais um desses descabidos, mas não é o único. Conseguiram finalmente atendimento aquelas pessoas que chegam com decisões judiciais, porém é preciso lembrar: vítimas de violência sexual têm direito ao aborto legal e não precisariam de nenhum documento do Judiciário, nem mesmo Boletim de Ocorrência. Ao invés de acolher e tentar entender a situação da mulher, alguns hospitais estão dizendo às pacientes para que voltem na próxima semana, ou que busquem outro lugar, e assim vão adiando o atendimento até que a interrupção da gravidez se torne cada vez mais difícil e arriscada. E depois que a gravidez passa de 22 semanas respondem: não fazemos.
No entanto, não sabemos quantas estão sendo negadas nos serviços de saúde, e tendo seu caso atendido, como na notícia da Folha: o hospital tentou encaminhar a jovem para terminar a gestação e encaminhar para adoção, exatamente como o caso de 2023. Numa nova consulta, no Hospital Prof. Mario Degni, o serviço disse que só faria o aborto com a autorização dos pais dela – mas ela é maior de idade, e portanto, não precisa disso. O hospital fez mais um absurdo: disseram que ela teria que pagar pelo sepultamento do feto, outra irregularidade.
Nosso país demorou mais de 40 anos para regulamentar o serviço de aborto legal, apesar da lei desde 1940 dizer que não criminaliza aborto decorrente de estupro. No entanto, políticos conservadores e com discurso anti-direitos estão conseguindo promover um retrocesso assustador. Em ano eleitoral é bom dar nome aos bois: a atual gestão municipal não tem o menor compromisso com os direitos das mulheres, ao contrário, está garantindo uma situação de violência institucional contra aquelas pessoas que têm direito a uma interrupção segura da gravidez e um acolhimento cuidadoso no sistema de saúde. Ao invés disso, estão sendo revitimizadas.