Brasil vai para eleições municipais em dívida com as mulheres

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Foto: Mídia Ninja

04 de setembro, 2024 Jornal da USP Por Silvana Salles e Tabita Said

Crescimento tímido das candidaturas de mulheres indica que ainda há muito a avançar se quisermos alcançar a paridade de gênero na política

A participação das mulheres brasileiras nas eleições vem crescendo, mas a passos lentos. Os dados da plataforma de estatísticas eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que a proporção de candidatas mulheres aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador cresceu neste ano, na comparação com 2020. No entanto, ainda está muito longe da paridade de gênero. Nestas eleições municipais, as mulheres são 15% das candidaturas a prefeito em todo o País, 23% das candidaturas a vice e 35% das candidaturas a vereador. Os números são indicativos da dívida que o Brasil tem com a representação das mulheres na política.

Segundo a cientista política Beatriz Sanchez, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e docente da disciplina Gênero e Política no Brasil: Teorias e Pesquisas Empíricas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, as atuais regras de financiamento eleitoral ajudaram a aumentar o número de candidaturas femininas no Brasil, embora muitos obstáculos à participação feminina permaneçam.

Ela lembra que o Brasil tem cotas de gênero nas eleições proporcionais desde a aprovação da Lei nº 9.100, em 1995. Inicialmente, a regra valeu para as candidaturas de vereadores nas eleições municipais de 1996. Em 1998, as cotas passaram a valer também nas eleições para deputados estaduais e federais. As regras de financiamento só vieram na década passada, por meio de resoluções do TSE.

“Com a decisão do TSE, dos 30% de recursos do fundo partidário, houve um impacto positivo na eleição de mulheres. A cota para mulheres na política tem funcionado para aumentar o número de candidaturas, mas para a gente atingir esses 30% levou 20 anos. Os partidos interpretam a lei como o limite, sendo que este deveria ser o piso mínimo: a partir de 30%, almejando a paridade de gênero”, destaca a pesquisadora da USP.

“As mulheres ainda hoje recebem menos dinheiro dos partidos para fazerem suas campanhas. E as pessoas que vão decidir quem vão ser os candidatos para onde vão os recursos do partido são, majoritariamente, homens e brancos”, afirma a docente.

Mesmo com regras, financiamento segue desigual

Apesar de os partidos serem obrigados a destinar 30% dos recursos do fundo eleitoral para candidaturas de mulheres, o aumento na proporção de candidatas não tem se refletido no aumento da porcentagem de mulheres eleitas. Tanto é que, em 2020, as mulheres foram 16,1% do total de vereadores eleitos no Brasil e 12,1% do total de prefeitos eleitos.

Segundo Beatriz, o problema começa dentro dos próprios partidos, que encontram diversas formas de burlar a regra dos 30%. “Nenhuma regra diz que esses 30% têm que ser igualmente distribuídos para todas as candidatas. Então, os partidos podem dar tudo para uma mesma candidata e deixar todas as outras sem nenhum recurso”, conta a docente.

Outra prática comum é destinar a verba para a campanha majoritária. “Você lança uma mulher como vice numa chapa majoritária e tem um homem na cabeça de chapa. Aquele investimento é considerado como investimento em uma candidatura feminina”, diz a pesquisadora.

Precisamos evoluir nos mecanismos de implementação e fiscalização dessa regra”, Beatriz Sanchez.

Em maio deste ano, o TSE aprovou a Súmula 73, que trata da caracterização de fraudes à cota de gênero. A norma orienta partidos políticos, federações, candidatas, candidatos e julgamentos da própria justiça eleitoral para as eleições deste ano. Entre outros pontos, a súmula do TSE estipula como critérios para identificar fraudes a votação zerada ou inexpressiva, a ausência de movimentação financeira relevante da candidatura e a ausência de atos efetivos de campanha.

São características das chamadas candidaturas laranjas. “São candidaturas lançadas sem nenhum apoio financeiro do partido, apenas para cumprir a cota. Há inclusive casos de mulheres lançadas candidatas sem ao menos saberem disso”, diz Beatriz.

A professora da USP destaca ainda exemplos de mau uso da propaganda eleitoral: “A gente tem visto aqueles santinhos que usam na propaganda política, que colocam um homem bem grande de um lado e uma mulher, bem pequenininha”. Ela explica que os partidos são obrigados a cumprir a porcentagem mínima de 5% de participação feminina também em todo o material de propaganda. “Considerando que as mulheres são metade da população, é uma coisa muito desproporcional”, aponta.

Menos tempo, menos capital político

Para além do financiamento, outros fatores institucionais e culturais fazem com que o crescimento da participação das mulheres na política avance em marcha lenta. A própria divisão sexual do trabalho pesa contra a participação das mulheres. Segundo o IBGE, em 2022 as mulheres brasileiras gastaram, em média, 9,6 horas a mais do que os homens com afazeres domésticos e trabalho de cuidado. Para elas, sobra menos tempo para o lazer, para a atividade física e também para participar da política.

Outro fator relevante é o sistema de votação adotado no Brasil nas eleições proporcionais, que são aquelas que elegem vereadores, deputados estaduais e deputados federais. É sobre elas que a cota de gênero incide. “O nosso sistema eleitoral é um sistema de lista aberta, o que significa que as pessoas votam em candidatos individualmente. Isso faz com que a questão do capital político tenha uma importância muito grande. Por terem menor capital político, as mulheres acabam tendo menor visibilidade para o eleitorado”, destaca Beatriz.

A pesquisadora afirma que países como Costa Rica, Argentina e México conseguiram atingir ou se aproximar da paridade de gênero em seus parlamentos utilizando o sistema de lista fechada. Nesse sistema de votação, os eleitores não votam em um candidato individual, e sim na legenda do partido. “São países que adotam o sistema de lista fechada com alternância de gênero. O que significa que a lista do partido tem um homem, uma mulher; e você vota nessa lista já pré-ordenada com o critério da paridade”, explica.

Vale lembrar que a sub-representação das mulheres na política é um problema global. Mensalmente, a União Interparlamentar computa os dados de participação feminina nos parlamentos de mais de 180 países. Na atualização de 1º de setembro do ranking IPU Parline, somente seis países têm 50% ou mais das cadeiras de suas câmaras baixas ocupadas por mulheres. O Brasil figura na constrangedora 132ª posição do ranking, a pior da América Latina, com 17,5% de participação feminina na Câmara dos Deputados e 17,3% no Senado.

Interesses femininos em jogo

Como avançar para garantir o direito das mulheres à representação política? “Uma das possibilidades seria uma política de cotas de reserva não de candidaturas, mas de cadeiras dentro do parlamento”, propõe Beatriz. É o modelo aplicado na Bolívia e no México, que contam com 50% de mulheres ocupando cargos no Legislativo. “Em termos de justiça de gênero e democracia, seria a meta da paridade de gênero; uma realidade distante da nossa, ainda”, lamenta.

A professora explica que a reserva de 30% das cadeiras para mulheres é discutida entre especialistas, embora sua implementação seja alvo de muita polêmica. “Como a gente vai considerar a questão de raça na intersecção de gênero nessa reserva de cadeiras? É supercomplexo em termos de desenhar a política pública, porque a nossa lei de cotas é de gênero. As mulheres que são eleitas são majoritariamente brancas, reproduzindo uma desigualdade racial.” Para os críticos da proposta, a reserva de cadeiras também interfere no poder de escolha do eleitor, deslegitimando sua decisão no momento da votação.

Além de se dedicar à pesquisa e à docência, Beatriz tem realizado ações de formação sobre gênero para mulheres filiadas a partidos políticos. “Eu apresento as regras que existem, a lei de financiamento, a lei recente da violência política de gênero. Porque há uma interpretação também de que a falta de financiamento é um tipo de violência política e uma violência patrimonial em relação à candidatura dessa mulher. Muitas delas nunca ouviram falar da reserva de dinheiro do partido”, afirma.

Reflexo de um fator cultural, o contexto político brasileiro reverbera e aprofunda desigualdades sociais ainda sem solução, já que a participação feminina mínima na política não garante a defesa de uma agenda em prol das mulheres. “Isso ocorre com candidatos negros que defendem falas racistas, candidatas mulheres que defendem o fim da lei de cotas para mulheres na política. Qual é a lógica? Pensar numa perspectiva mais complexa sobre essa representação, mais qualificada e que não seja só o discurso vazio da representatividade”, aconselha.

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