Tema é tratado com reserva por candidatos à prefeitura e sem menções nos planos de governo
A mãe de Maria (nome fictício) estranhou a irritação da filha e as roupas largas para esconder a barriga volumosa. Depois de muita insistência, a jovem de 14 anos contou que foi estuprada pelo companheiro da avó e que guardou em segredo por meses a violência sofrida. A família descobriu a gravidez da adolescente, registrou um Boletim de Ocorrência e procurou o Hospital da Mulher para fazer o aborto legal em São Paulo. Lá, começou a peregrinação.
A menina, com 29 semanas de gestação, foi encaminhada para o hospital municipal Vila Nova Cachoeirinha, o único na cidade a interromper a gravidez avançada, acima de 22 semanas. O procedimento foi marcado três vezes, mas sempre cancelado. Pouco tempo depois, o hospital desativou o serviço e Maria teve que ir para Salvador, amparada por uma ONG, para fazer o aborto.
A peregrinação enfrentada por Maria tem se repetido na vida de outras meninas e mulheres na capital há meses, desde dezembro. Primeira cidade do país a implementar um programa de aborto legal, São Paulo enfrenta um retrocesso em meio ao avanço do conservadorismo e da aliança do prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). E o debate sobre o aborto nos casos previstos em lei é tratado com reservas pelos candidatos à prefeitura.
A dificuldade de acesso ao que a lei garante ficou evidente a partir de dezembro de 2023, quando a gestão Nunes suspendeu o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha. A unidade até então era referência nacional e a única na capital capacitada a interromper gestações avançadas.
A legislação é clara. O aborto é autorizado em casos de estupro, de anencefalia fetal ou de risco à gestante. Para nenhuma dessas circunstâncias a legislação impõe prazo limite para interromper a gestação. A suspensão do atendimento no Vila Nova Cachoeirinha ocorreu antes mesmo do chamado PL do Aborto avançar na Câmara. Foi antes também de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), em abril, tentar restringir a prática do aborto após as 22 semanas de gestação com a proibição do método de assistolia fetal, recomendado pela Organização Mundial da Saúde na interrupção de gravidez avançada. A resolução está suspensa por decisão do ministro Alexandre de Moraes, até que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue sua legalidade.
Mas foi nesse período que as consequências da decisão da gestão Nunes ficaram mais evidentes. Vítimas de violência com gestação acima de 22 semanas precisaram ir a outras cidades ou enfrentaram dificuldades para serem atendidas, segundo relatos coletados pela Defensoria Pública, pelo Sindicato dos Médicos de São Paulo e pelo Projeto Vivas, ONG que auxilia adolescentes e mulheres a terem acesso ao aborto legal.
Em outro caso de gravidez em decorrência de estupro, uma mulher tentou ser atendida em três hospitais na capital, mas só conseguiu realizar o aborto legal em outro Estado, com a ajuda da Defensoria Pública. Na 24ª semana de gravidez, ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto, em um dos hospitais municipais indicados pela prefeitura para o procedimento.
A prefeitura chegou a assumir ao STF ter ocorrido uma “negativa momentânea” de aborto de uma vítima de estupro após as 22 semanas, mas afirmou que ela, depois, foi procurada e realizou o procedimento em outra unidade. Segundo a Defensoria, o aborto aconteceu somente após ordem judicial, e a assistolia fetal, necessária nesse caso, foi feita em hospital federal.
O órgão avalia que a falta de informações da prefeitura, exigências não previstas em lei e a escassez de equipes capacitadas são os principais obstáculos hoje para a realização do aborto legal, especialmente de gestações avançadas. “O núcleo não tem informação de nenhum procedimento de assistolia fetal ter sido feito nos hospitais da rede municipal indicados para a realização do aborto legal”, afirma a defensora Fernanda Hueso.
Mais recentemente, em junho, uma outra mulher com gravidez avançada em decorrência de estupro só conseguiu fazer o aborto em uma unidade estadual, o Hospital da Mulher, após ter seis consultas remarcadas em órgãos municipais. Ela disse que foi dissuadida de seguir com sua decisão e ouviu que seria responsável pelo funeral do feto abortado.
“A secretaria atende […] em observância à legislação”
— Sec. de saúde
A prefeitura foi investigada pela Polícia Civil após denúncias de acesso ilegal a prontuários de pacientes que fizeram aborto no Vila Nova Cachoeirinha. Os dados são sigilosos, mas foram consultados não só pela gestão como também foram repassados ao Conselho Regional de Medicina. A gestão também foi intimada duas vezes por Alexandre Moraes para comprovar que seguia a atual legislação.
Ao menos duas médicas tornaram-se alvo de procedimento do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e tiveram o registro suspenso temporariamente porque teriam realizado o procedimento legal com ordem judicial. O Sindicato dos Médicos, que acompanha o caso, criticou a ação da prefeitura. “Não houve denúncia de paciente nem nada que justificasse o acesso aos prontuários”, disse a médica Juliana Salles, dirigente do sindicato. “Os dados foram pegos por ilicitude.”
O Cremesp afirmou que os processos estão sob sigilo e negou que tenha usado sua prerrogativa de fiscalizar o exercício da medicina para perseguir profissionais ou “reprimir ideologias de qualquer espectro político”.
O conselho disse respeitar o direito da mulher e que sua atuação é pautada pelo “pelo rigor técnico-científico e pela imparcialidade”, mas pondera que os médicos que “pretendem utilizar a medicina para fins escusos, antiéticos e ilegais serão sancionados pelo Conselho Regional de Medicina”.
No início deste mês, o autor da resolução questionada no STF, Raphael Câmara Parente, foi reeleito conselheiro do CFM no Rio. Seu material de campanha continha frases contra a esquerda e contra “matança de bebês”.
Parlamentares de oposição, a Defensoria Pública e o Ministério Público recorreram à Justiça para o serviço ser restabelecido na capital. Um apelo também foi enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).