A Associação de Pesquisa Iyaleta lançou hoje, 19 de setembro, a 6ª edição do Caderno Iyaleta, intitulado “Semiárido em perspectiva de gênero: violências sexuais contra meninas e adolescentes e os efeitos dos períodos prolongados de seca”, de autoria da doutora em saúde pública Emanuelle Góes, pesquisadora sênior e líder da linha de pesquisa “Equidade de gênero e justiça reprodutiva” da organização. Para marcar o lançamento deste estudo inédito, a Agência Patrícia Galvão entrevistou a pesquisadora para explorar a conexão entre as mudanças climáticas e a violência vivida por mulheres e meninas nos territórios do semiárido. Confira a entrevista completa!
Agência Patrícia Galvão: Como surgiu a ideia de conectar questões de gênero na região semiárida? Quais lacunas essa pesquisa preenche?
Emanuelle Góes: Essa questão surgiu no início do nosso projeto de adaptação, dentro dos projetos da Iyaleta, onde sou responsável pela linha de pesquisa sobre equidade de gênero. Como pesquisadora sênior, comecei a investigar e levantar questões de gênero no contexto de eventos climáticos extremos. Durante essas investigações, encontrei diversos dados, tanto sobre inundações quanto sobre estiagens e secas prolongadas. Isso me permitiu identificar várias realidades, especialmente no Sul Global, que mostram a intensificação das violências de gênero em cenários de escassez de água e secas prolongadas.
Diante disso, surgiu a necessidade de investigar essa questão no Brasil, com foco no semiárido, onde a seca prolongada é uma realidade. Utilizando dados disponíveis no sistema de informação em saúde, o DataSUS do Ministério da Saúde, e considerando minha formação em epidemiologia, resolvi realizar essa análise para observar o que poderia ser detectado ao compararmos essa realidade com o cenário internacional. A violência baseada em gênero é uma questão central na agenda das mudanças climáticas e essa investigação focou nas meninas e adolescentes que vivem no semiárido, comparando-as com aquelas que estão fora desse contexto. Observamos que, embora já haja desigualdades para aquelas que estão fora, essas se intensificam no contexto de seca prolongada.
Esses dados mostram que situações extremas relacionadas às mudanças climáticas agravam as violências de gênero vivenciadas por meninas, adolescentes, mulheres e pessoas de gêneros diversos, especialmente em relação à violência sexual. Além disso, refletem em arranjos como o casamento infantil e a gravidez na adolescência, considerados impactos indiretos desses eventos extremos. É nesse sentido que o caderno oferece sua primeira entrega, focando nas questões de gênero em relação às secas prolongadas.
Agência Patrícia Galvão: O estudo aponta que a Violência Baseada em Gênero (VBG) está sendo chamada para o centro da agenda climática. Como os efeitos das mudanças climáticas intensificam as violações de direitos das meninas e mulheres, e que ações você vê como necessárias para mitigar esse cenário?
Emanuelle Góes: Embora ainda faltem evidências robustas e estudos em grande escala que abordem as questões estruturais com base em dados subnacionais, como de municípios e estados, temos poucas análises elaboradas até o momento. Acredito que este caderno contribui nesse sentido, ao trazer, além de uma reflexão sobre o tema, dados específicos que consideram o semiárido, um contexto que também deve ser analisado pela perspectiva das mudanças climáticas. Quando pensamos no semiárido e nos impactos das secas prolongadas, esse estudo nos permite observar como essa realidade está inserida na agenda das mudanças climáticas, onde as questões de gênero e as violências de gênero devem ocupar um papel central.
O compromisso com a agenda de gênero no contexto da COP (reuniões regulares da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima) é recente. No entanto, os planos de ação com enfoque em gênero já vêm sendo abordados, ainda que de forma tímida, desde o Acordo de Paris. Esse caderno, ao ser mais direcionado às questões de gênero nessa relação com o clima, dá um passo importante.
Ao pensarmos em medidas tanto de adaptação quanto de mitigação, é fundamental primeiro expor as desigualdades preexistentes e mostrar como as violências baseadas em gênero, já presentes, são agravadas pelos eventos climáticos extremos. Precisamos de ações que enfrentem essa realidade, de forma que as medidas de adaptação ao clima incluam o enfrentamento às violências de gênero. Essas ações podem, inclusive, reverter situações de violência diretamente associadas a esse contexto. Muitas vezes, o casamento infantil e a violência sexual estão relacionados à escassez de água. Ao garantir o acesso à água de qualidade e em quantidade suficiente, podemos eliminar, em primeira instância, as violências relacionadas a essa carência.
Assim, ao pensar em adaptação e mitigação climática, é crucial considerar as questões de gênero, organizando ações que busquem reduzir marcadamente as desigualdades de gênero no país e no mundo.
Agência Patrícia Galvão: Em termos de desigualdade de gênero, como o semiárido se diferencia de outras regiões do Brasil? Existe uma particularidade no impacto das questões de gênero nas regiões abrangidas pelo estudo?
Emanuelle Góes: Não posso fazer comparações porque esse estudo não se propôs a comparar diferentes regiões. O que fiz foi analisar as meninas e adolescentes que vivem em municípios do semiárido em extrema pobreza e compará-las com aquelas que estão fora desse contexto. Isso me permitiu observar uma realidade para as que vivem nessa situação e outra para as que não vivem. Aqueles que estão fora desse contexto incluem diversas regiões, como a Amazônia Legal e áreas de fronteira, que apresentam perfis diferentes. No entanto, não fiz essa separação específica neste estudo, pois isso exigiria uma análise detalhada de cada contexto, o que não seria possível abordar de forma tão dedicada neste caderno.
O foco foi o semiárido devido à realidade das secas prolongadas, um fenômeno também presente em outras partes do mundo, especialmente no Sul Global. A escolha se deu mais pela tentativa de dialogar com cenários globais do que por uma comparação entre regiões brasileiras.
Temos interesse em analisar as questões de gênero em outros contextos, como a Amazônia Legal, no futuro, mas sem intenção de fazer comparações. Nosso objetivo é mostrar a realidade de cada lugar. O que nos mobilizou foi, sobretudo, a interlocução com outras realidades internacionais e o legado histórico do semiárido, uma região marcada pela falta de atenção, de assistência e de políticas públicas, que sobrecarrega e torna as mulheres mais vulneráveis. Já temos uma compreensão prévia de que essa região vivencia maiores desigualdades e essa percepção foi um dos fatores que nos levaram a focar nesse contexto.
Agência Patrícia Galvão: O estudo sugere que mulheres e meninas com mais informações conseguem identificar e denunciar formas sutis de violência sexual. Como podemos garantir que mulheres e meninas em regiões de vulnerabilidade tenham acesso à educação adequada sobre violência de gênero?
Emanuelle Góes: Esse é um grande desafio, pois estamos cada vez mais distantes dos grandes centros urbanos, o que limita o acesso às políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para o enfrentamento das violências sexuais e de gênero, além de políticas que ofereçam informações sobre educação sexual. Sabemos que, em áreas mais remotas, esses acessos são ainda mais difíceis. Por isso, os percentuais de estudos, assim como em outras regiões, indicam índices mais elevados de gravidez na adolescência, maternidade precoce, casamentos e uniões conjugais precoces, além de casos de violência sexual, como o estupro, que são mais facilmente identificados por terceiros.
As formas de violência mais sutis, como o assédio, muitas vezes passam despercebidas, pois requerem que a própria vítima as reconheça. Para isso, é necessária uma certa compreensão sobre educação sexual, para que se possa identificar o que está acontecendo. Este é um dos principais desafios que apontamos: em locais onde há grandes lacunas de políticas públicas – seja em assistência, educação, segurança pública ou saúde sexual e reprodutiva – a atenção deve ser redobrada.
As políticas públicas que chegam a esses locais, mesmo as voltadas para outras áreas, como as políticas sociais, por exemplo, a de cisternas, precisam ser acompanhadas por ações voltadas ao enfrentamento da violência de gênero e à promoção da educação sexual informada. Este é um desafio que estamos propondo discutir em conjunto, como sociedade e Estado.
Agência Patrícia Galvão: De que maneira os resultados deste estudo podem contribuir para a formulação de políticas públicas interseccionais que abordem as questões de gênero, raça e classe no semiárido?
Emanuelle Góes: As recomendações deste estudo enfatizam a necessidade de centralizar a construção de políticas no campo das mudanças climáticas, tanto em termos de adaptação quanto de mitigação. No entanto, podemos expandir essa discussão, abordando a criação de políticas públicas interseccionais, que garantam que as pessoas possam viver em seus territórios sem serem forçadas a se deslocar pela falta de direitos ou de políticas públicas. Os programas precisam alcançar as pessoas onde elas vivem, para que possam escolher permanecer por vontade própria e não por serem obrigadas a migrar devido à desassistência em seus territórios.
Essas políticas devem ser desenhadas de forma interseccional, levando em consideração quem são as mulheres que frequentemente permanecem sozinhas em seus territórios criando seus filhos. A pobreza é feminizada e também racializada. Isso exige que pensemos em políticas públicas interseccionais que respondam a essas questões. O Estado precisa garantir que as meninas e mulheres possam continuar em seus locais com dignidade, assegurando-lhes o bem-viver, acesso à saúde, educação e água de qualidade e em quantidade suficiente, como direitos humanos fundamentais.
Esse caderno também destaca como muitas pessoas são forçadas a se deslocar devido à ausência do Estado, à falta de acesso à água e à própria degradação dos territórios, o que tem se tornado mais comum em decorrência das mudanças climáticas. É por isso que chamamos a atenção para a necessidade de criar políticas que garantam um território habitável, com qualidade de vida e saúde, onde meninas não sejam expostas à violência por conta desse contexto. Elas devem ter tempo para estudar, brincar, ou até mesmo não fazer nada, e não serem forçadas a buscar água, correndo o risco de sofrer algum tipo de violência sexual. Entregamos este material à sociedade para contribuir com esse debate.