Em todo o mundo existem milhares de vítimas do tráfico de pessoas para a exploração sexual de mulheres e crianças, um crime silencioso, bárbaro e que viola os direitos humanos. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) aponta que anualmente cerca de 2,5 milhões de pessoas são vítimas de tráfico de pessoas, incluindo a exploração sexual.
Essa é uma realidade que mulheres e meninas do Haiti ou de outros países que vivem situações de guerras, conflitos sociopolíticos ou crise climática enfrentam constantemente. Em maio deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) alertou sobre o uso da violência sexual contra mulheres e meninas como tática de poder de traficantes no Haiti. No Brasil, mais 13.500 denúncias de violência contra crianças e adolescentes foram registradas até agosto de 2024, segundo informações do painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Todo este contexto que acabamos de ler não são apenas dados: são dores de muitas vidas e por esta razão, desde 1999, a data de 23 de setembro é um dia para gritar Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças. Em homenagem à Lei Palácios, promulgada em 1913 na Argentina para punir a exploração sexual, a Conferência Mundial de Coligação contra o Tráfico de Mulheres dedicou a data mundial de conscientização.
A Comissão Especial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CEETH-CNBB) incentiva as ações desta data para o combate à exploração sexual. O dia 23 de setembro é momento para direcionar o holofote ao problema, mas durante todo o ano o tema precisa ser debatido e enfrentado nos vários espaços da sociedade. A visibilidade, mobilização, informação e denúncias são formas de combater a exploração sexual e o tráfico de mulheres e crianças.
Para compreender a importância deste tema, a reportagem do Cepast-CNBB entrevistou Luciana Temer, advogada, doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, militante em direitos humanos e preside o Instituto Liberta. A organização trabalha com o temática da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil desde 2017.
Luciana argumenta que a violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes no Brasil é perpetuada em razão da cultura machista que minimiza a gravidade desses crimes. A vulnerabilidade das vítimas é um dos elementos que proporciona ocorrências dessa violência silenciosa, um outro fator que contribui é a violência intrafamiliar ou violência doméstica. Ela destaca a informação como uma das estratégias poderosa de combate. Embora o tema seja indigesto para muitos, é extremamente necessário desmistificar e promover ações de prevenção para proteger vítimas e punir os agressores.
A entrevista é de Cláudia Pereira, publicada por Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora – Cepast, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, 23-09-2024.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Luciana, o tráfico de mulheres, crianças, adolescentes e meninas e meninos é uma violência que acontece em todo o mundo e que viola os direitos humanos. Podemos afirmar que essa violência em nosso país é cultural? Como podemos enfrentar essa realidade complexa, que envolve questões culturais e sociais e de determinados grupos, a exemplo das mulheres e crianças na fronteira do Brasil e Venezuela?
Quando olhamos para essa violência sexual, temos que entender que vivemos em um contexto permissivo para a violência sexual contra mulheres e contra crianças. Em razão desse machismo cultural, a exploração de meninas é mais comum, mas há muitos meninos sendo vítimas de violência e exploração sexual. Dito isso, eu quero dizer que sim, é uma questão cultural. Acontece em todas as classes sociais. A vulnerabilidade social é um elemento muito importante, sobretudo quando você fala de tráfico de pessoas e de exploração sexual. Sabemos que são crimes violentos. Muitas vezes, esses crimes também acontecem a partir de um desconhecimento da criança, da menina quando passa pelo processo de sedução com promessas de coisas que virão. “Então, se você vier comigo, eu vou lhe dar uma vida maravilhosa, eu vou transformar você em modelo, ou eu vou levar você para conhecer a Disney…” Todas as meninas hoje querem ser modelos, toda criança sonha com a Disney.
Mais de 60% dos estupros registrados no Brasil, em 2023, foram contra menores de 13 anos. Esses estupros, em 65% das ocasiões, aconteceram dentro da casa da vítima. Em mais de 80%, foi praticado por pessoas conhecidas, a maioria familiares. Observamos que essas meninas acabam naturalizando as violências em suas vidas. Mas como é que podemos sair dessa situação? Primeiro, a vulnerabilidade social, é um fator importante e temos de lutar contra ela. A informação é muito importante. E se tem algo que nós, da sociedade civil, da Igreja, podemos fazer é ajudar na construção de consciência e informação. Explicar para esta menina e para este menino os riscos de ceder a um convite desses e exemplificar por meio de fatos.
O enfrentamento é longo, mas tem que começar. Nós acreditamos que o caminho é por meio da consciência e informação. É o que nós podemos dar hoje para essas meninas e meninos e para as famílias dessas crianças. Precisamos informar para que entendam o quadro da violência e, assim, se empoderar essas crianças para resistirem.
Você enfatiza que a informação é uma das ferramentas contra esse tipo de violência. Vivemos atualmente o desafio em combater a desinformação e as crianças e os adolescentes têm na palma da mão uma janela para o mundo, da qual às vezes eles se abstêm da realidade. Por outro lado, a tecnologia da informação está disponível para fazer o enfrentamento a essa violência. Como o Instituto Liberta vivencia essa realidade e como podemos ajudar as novas gerações diante deste desafio?
Precisamos estar à frente da informação que chega pelo celular. A publicidade de sites de prostituição em eventos esportivos, como nos jogos de futebol, é um sinal claro de como a nossa sociedade está normalizando a violência. Vou dar um exemplo: nos últimos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol, havia muitas propagandas no entorno do estádio, entre elas estava a publicidade de site de prostituição. Isso é assustador, naturalizou-se uma propaganda de site de prostituição. A criança assiste e se depara com uma situação como se aquilo fosse absolutamente natural. A pornografia está no celular, então veja, não falamos sobre questões de proteção contra violência sexual, mesmo de sexualidade saudável com os jovens, porque temos um constrangimento e achamos que não é nossa competência fazer isso.
Não podemos nos esquecer que a pornografia está falando com todas essas crianças a partir de 10, 11 anos de idade, ou seja, com qualquer criança que tenha acesso a um computador ou a um celular. A criança com acesso aos aparelhos está aprendendo a se relacionar com essa questão do sexo e da violência a partir desta informação. Temos sido muito irresponsáveis como sociedade por não falar com os jovens sobre o tema da sexualidade. A família que tem que falar, mas na realidade, é esse aparelhinho, o celular, que tem conversado largamente com eles e isso tem sido de um prejuízo gigante para a nossa sociedade. Essa pornografia naturaliza as violências que realmente queremos evitar. A violência e exploração sexual de crianças está acontecendo na internet lícita, na internet livre e aberta.
A educação sexual, que é um direito das crianças e adolescentes e contribui para esse enfrentamento, está polarizada. Como avançar com este tema nas escolas?
O termo educação sexual está muito contaminado de preconceitos, de pré-julgamentos e de informações erradas que aconteceram nos últimos anos. Aqui no Liberta, defendemos o termo prevenção às violências sexuais. Com crianças pequenas. E desenvolvimento de sexualidade saudável e responsável com jovens. Vou apresentar dados: No Brasil, há 5 crianças nascendo por hora, crianças que são filhas de mães menores de 15 anos. Como é que pode dar certo isso? Precisamos falar sobre sexualidade saudável e responsável com jovens. Agora, isso hoje é um tabu. E acham que a escola não pode falar? Só a família que pode falar? Quantas famílias têm condições de fazer uma conversa? E olha, mesmo as que têm condições, não têm feito. Sabemos disso. A escola tem que ser vista como um grande aliado nesta prevenção à violência. Precisamos fazer uma grande construção coletiva deste tema, porque é a única forma de proteger essas crianças e adolescentes no nosso país.
Quais são os sinais dessas violências sofridas por crianças e adolescentes a ser observados para prevenir e proteger as vítimas?
Nem tudo pode ser considerado violência sexual. A criança tem outros sofrimentos. Às vezes, brigou com um amiguinho, uma amiguinha, enfim. Temos materiais adequados para fazer conversas com crianças, sem falar de sexo, nem de violência, mas que elas percebam que alguma coisa está errada. Muitas vezes, a criança é tão ingênua que ela está vivendo uma situação de violência e nem percebe, porque ninguém nunca contou para ela que aquilo era uma violência. Isso é muito comum, as pessoas falam, imaginam, mas a criança não vai saber. Às vezes, essa violência não acontece de forma violenta, mas de forma sedutora. Então, se alguém tem uma desconfiança de que algo está acontecendo, abra um espaço de conversa. Ah, mas eu não consigo fazer essa conversa diretamente. Não é para fazer diretamente! Vamos utilizar ferramentas, materiais ou assistir um filminho com a criança. Abrir possibilidades de conversa é muito importante para que a criança possa revelar o que está acontecendo com ela.