Entidades oferecem formações religiosas, validam nomes para cargos no sistema jurídico e influenciam decisões judiciais
A avaliação de um processo judicial, em um Estado laico e democrático, deveria ser técnica, sem priorizar crenças ou questões pessoais. Mas juízes, promotores, advogados e outros operadores do Sistema de Justiça têm cada vez mais se organizado em grupos e associações de diferentes religiões – evangélicas, católica e espírita – para dar suporte a decisões baseadas na fé.
Em uma cruzada antidireitos, as entidades oferecem formação em Direito sob perspectiva religiosa, validam nomes para cargos importantes no sistema jurídico, articulam interferências em votações no Supremo Tribunal Federal (STF), influenciam decisões judiciais em âmbito individual e coletivo. Quando se trata do tema aborto, a convicção moral e religiosa pode restringir um direito humano e afetar a saúde de mulheres, meninas e pessoas que gestam.
Associações de classe e crença
A Associação Nacional dos Magistrados Evangélicos (Anamel) realiza seminários e congressos nos quais defende uma visão religiosa do Direito. No mais recente, o painel online “O cristão e o processo penal justo”, defendeu a Bíblia como um manual, por conter “determinações, orientações que servem para nossa vida, inclusive para o processo penal, como nós vamos julgar”. A Anamel transmite cultos semanais com a participação de magistrados em sua página do Instagram.
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) defende que, “no caso do Direito, especificamente, somente a cosmovisão cristã pode erigir um sistema de justiça, igualdade e dignidade da pessoa humana“. A entidade, formada por desembargadores, juízes, advogados, promotores e defensores públicos, busca ainda explicar por que “a ética cristã é bom para a sociedade”, ou que “a visão bíblica da natureza humana é essencial para uma boa política pública”.
Pessoas com poder de decisão, trabalhadores do Judiciário, se reúnem também na Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas (Abrame), União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), União Brasileira dos Juristas Católicos (Ubrajuc), Associação Brasileira dos Juristas Conservadores (Abrajuc) para encaminhar ações conservadoras.
Formação em ‘Direito Religioso’
Os grupos de juristas católicos e evangélicos têm investido na formação de novos profissionais. O objetivo é garantir um futuro com mais advogados, juízes e outros operadores do Direito “atuando em prol dos valores da neocristandade católica”, como relata a pesquisa Cartografia dos catolicismos jurídicos antigênero do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
“Direito natural e segurança jurídica nas decisões judiciais” é o tema de um dos seminários à venda no Instituto Ives Gandra. Membro do Opus Dei, Ives Gandra fundou a União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), é um dos fundadores da União Brasileira de Juristas Católicos e também criou o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).
Como representante da Ujucasp, Ives defendeu que a vida começa na concepção, apontando como fonte técnica a Academia de Ciências do Vaticano, em argumentação oral enviada ao STF contra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 (que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana). O jurista sugere um suposto consenso científico, mas o marco temporal da vida humana é um debate ainda sem conclusão.
A formação na cosmovisão cristã, baseada principalmente no calvinismo, é o foco da Academia Anajure, criada em 2016. Com oferta de 40 vagas por turma, a escola oferece hospedagem e alimentação para os selecionados, que têm aulas presenciais durante uma semana. As inscrições são restritas para estudantes de Direito e recém-formados, que devem apresentar carta de recomendação do pastor.
“Equipar jovens líderes a aplicar a Palavra de Deus em cada esfera de suas vidas” é um dos propósitos do curso anual da Anajure. Na carta de princípios que os participantes assinam, há um compromisso de desempenhar o trabalho “de modo a glorificar ao Senhor Jesus, a edificar e auxiliar a Igreja e a proclamar os valores ínsitos à fé cristã no Brasil e no mundo.”
No seminário da Anamel também existem falas que vão contra a laicidade da Justiça e do processo penal justo, a exemplo de: “temos que buscar na Bíblia a visão de constituinte“. Em uma entrevista sobre a Anamel na Rede Super de Televisão, a juíza Luziene Barbosa Lima, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), diz que a associação surge de uma revelação do Senhor e que tem o intuito de ocupar o Estado para levar o evangelho.
Cristianismo guiando a justiça
Basta uma chance de impedir avanços no direito ao aborto para as entidades religiosas de juristas tentarem impor suas convicções nos debates. Foi o que aconteceu quando o STF iniciou a votação da ADPF 442.
A Anajure escreveu uma carta aberta ao Supremo com argumentos baseados na fé e foi aceita como amicus curiae – que é uma espécie de consultor no julgamento da ação. Entre citações da Constituição Federal e trechos bíblicos, a entidade classifica a vida como “dádiva divina” e convoca o país a entrar em oração.
Evangélicos e católicos se reuniram em outra carta contra a ADPF 442, assinada pela Anajure, pela Ujucasp, Ubrajuc, Abrajuc e mais grupos religiosos. A Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas (Abrame) também manifestou seu repúdio de forma independente.
Influência em cargos importantes
As entidades também investem no lobby para que juristas alinhados às suas crenças ocupem cargos em órgãos federais do Judiciário. Durante o governo de Jair Bolsonaro, a Anajure sabatinou os candidatos à Defensoria Pública da União (DPU) e depois comunicou o apoio a Daniel Macedo, nome confirmado dias depois.
Daniel ocupou o cargo até janeiro de 2023 e tratou com naturalidade a mistura entre suas crenças e a chefia da DPU. “Se uma parte da Defensoria defende o aborto, temos que ter outra parte que defenda a vida. Senão vira um patrulhamento de um lado só”, disse em entrevista à Revista Piauí após a Presidência anunciar sua indicação.
Outro aval da Anajure foi na escolha de Augusto Aras para a Procuradoria Geral da República (PGR) – órgão que ele deixou em setembro de 2023, após 4 anos. Aras foi o único dos candidatos a assinar a carta de princípios enviada pela associação. Em fevereiro de 2020, Edna Zilli, atual presidente da Anajure, foi recebida pelo chefe de gabinete da PGR para defender a permanência de um missionário evangélico na Funai.
Incidência organizada “em nome de Deus”
A presença de marcadores religiosos na política institucional brasileira está até na lei. “Promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”, diz o preâmbulo da Carta Magna. “É algo tão comum que talvez tenha sido naturalizado, mas que tem ficado mais evidente quando a incidência de atores religiosos passa a ser mais organizada”, esclarece Lívia Reis, pesquisadora do ISER que atuou na pesquisa Cartografia dos catolicismos jurídicos antigênero.
A criação de entidades de juristas a partir da religião está prevista no ordenamento legal brasileiro e sua existência não afronta o Estado laico, como explica Lívia. Mas, “o problema passa a ser justamente quando o Estado, através das pessoas que o representam nos órgãos de decisão, baseiam suas decisões em valores religiosos”, pondera.
A incidência de valores religiosos no Judiciário, no entanto, nunca dependeu da existência dessas associações. A pesquisadora ressalta que a Justiça não é neutra, embora devesse se basear na garantia de direitos fundamentais e sociais, o que muitas vezes é negado.
O ISER mapeia a atuação dessas entidades em processos e observa que a alusão direta à religião está sendo substituída pelo jusnaturalismo ou direito natural – uma espécie de lei imposta pela natureza e independente dos homens. “No caso do aborto, recorrem a argumentos científicos sobre a origem da vida”, comenta Lívia Reis.