Mãe preta: morte, apagamento e racismo, por Amarílis Costa

03 de outubro, 2024 Carta Capital Por Amarílis Costa

A reflexão que o caso de Alyne Pimentel nos impõe é: até quando o Brasil vai continuar permitindo que mães negras percam suas vidas devido à negligência médica durante o parto?

Após mais de 22 anos da morte de Alyne Pimentel, a Rede Alyne surge como uma nova política de humanização do parto e nascimento, com o objetivo de reduzir a morte materna e neonatal no Brasil. Alyne, uma mulher negra e pobre da Baixada Fluminense, morreu devido à negligência médica em um hospital público do Rio de Janeiro. Sua tragédia, que poderia ter sido evitada, tornou-se um símbolo das profundas desigualdades no acesso à saúde materna e do racismo estrutural que permeia o sistema de saúde.

Alyne Pimentel aguardou por 21 horas por atendimento médico qualificado, mas estamos há mais de 22 anos esperando uma resposta efetiva do Estado brasileiro sobre justiça reprodutiva e proteção às mulheres negras. A ONU reconheceu que essa tragédia só ocorreu porque Alyne era mulher, negra e pobre. Se fosse apenas pobre, e não negra, as chances de ter recebido um tratamento digno poderiam ter sido maiores. Esse reconhecimento escancara a lógica de um Brasil historicamente perverso com mulheres negras, perpetuando a exclusão. A interseccionalidade de raça, gênero e classe é o que torna essa violência tão arraigada. O racismo estrutural e a desigualdade de gênero andam lado a lado, amplificando as vulnerabilidades das mulheres negras.

Essa violência sistemática não é nova. Desde a CPI da laqueadura, em 1991, quando o país esterilizava mulheres negras, até hoje, quando as mata na mesa de parto, o racismo estrutural continua a definir quem recebe cuidados adequados e quem é ignorado. Quantas mulheres negras já não sofreram violência obstétrica? Essa é uma realidade vivida por nossas mães, avós e, ainda, por muitas de nós. O caso de Alyne Pimentel nos leva a refletir: por quanto tempo o Brasil ainda vai permitir que mães negras morram para que outras vidas nasçam? Quantas mais precisarão morrer antes que o sistema de saúde mude e ofereça tratamento digno?

Em 2011, o Comitê CEDAW responsabilizou o Estado brasileiro pela violação dos direitos reprodutivos de Alyne, estabelecendo um precedente que reforçou a obrigação do governo de garantir cuidados obstétricos de qualidade, independentemente da terceirização dos serviços. Embora o Brasil tenha sido obrigado a adotar medidas como o treinamento adequado de profissionais de saúde, a implementação de protocolos mais rigorosos e a fiscalização de serviços públicos e privados, essas mudanças ainda não foram colocadas em prática de forma eficaz. As desigualdades persistem, e o sistema de saúde continua falhando em proteger mulheres negras, indígenas e pobres.

Grávida de seis meses, Alyne buscou atendimento após sentir fortes dores e sintomas de complicações. Enfrentou falhas graves no protocolo médico: a curetagem necessária para remover a placenta só foi realizada 14 horas após o parto de natimorto, e a transferência para um hospital mais capacitado também foi tardia. Essas falhas, somadas ao descaso e à negligência, resultaram em sua morte. Ela deixou uma filha de cinco anos, e sua morte tornou-se um marco na luta pelos direitos reprodutivos no Brasil. Sua história permanece um símbolo das falhas persistentes no sistema de saúde, que continuam impactando a vida de milhares de brasileiras. Dados da OMS mostram que mulheres negras têm quase duas vezes mais chances de morrer por complicações na gravidez e no parto em comparação às mulheres brancas. Nas regiões Norte e Nordeste, onde a pobreza é mais concentrada, a mortalidade materna é ainda maior.

A luta por justiça reprodutiva no Brasil é urgente. O racismo estrutural, aliado à precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) e aos cortes em políticas públicas, faz com que mulheres negras, indígenas e de baixa renda continuem enfrentando as mesmas barreiras que levaram à morte de Alyne. O lançamento da Rede Alyne, voltada à redução da mortalidade materna e neonatal e à humanização do parto, é um passo importante, mas, como mostra esse caso, somente políticas públicas concretas poderão transformar essa realidade.

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