Município interrompeu serviço que atendia gestações avançadas e agora cita ‘parceria’ com governo estadual
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) omite a restrição ao aborto legal praticada por sua gestão e a terceirização do procedimento para o Governo de São Paulo ao afirmar reiteradamente que a prefeitura cumpre a legislação sobre o tema mesmo no caso de gestações avançadas.
Em fevereiro, ele disse que a prefeitura “nunca se omitiu de fazer” o atendimento nos casos previstos em lei.
Em dezembro do ano passado, porém, a gestão do emedebista interrompeu o serviço no hospital Vila Nova Cachoeirinha, o único da rede municipal que realizava aborto após 22 semanas de gestação.
A decisão antecedeu em poucos meses uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) posteriormente suspensa pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
O texto, que teve como relator um ex-integrante do Ministério da Saúde do governo de Jair Bolsonaro (PL), vetava a assistolia fetal, que consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar sinais transitórios de vida e é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para gestações avançadas.
A resolução do conselho impulsionou a mobilização por um projeto de lei no Congresso que equipara o procedimento nesses casos ao crime de homicídio.
Durante todo o primeiro semestre de 2024, mulheres tiveram dificuldade de interromper gestações avançadas na capital paulista, e algumas precisaram viajar a outros estados.
O aborto é permitido no Brasil quando há risco à vida da mãe e em caso de estupro e anencefalia, independentemente do tempo de gravidez.
No segundo semestre deste ano, como mostrou a Folha, o Governo de São Paulo passou a determinar que o procedimento fosse realizado em unidades de referência sem limite de idade gestacional. A ordem veio na esteira da decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes que suspendeu a resolução do CFM e resguardou o aborto tardio.
Com isso, a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), principal fiador da campanha de Nunes, saiu em socorro do município e assumiu o fluxo dos atendimentos que não são mais realizados na rede da prefeitura.
Nunes vem omitindo que delega o aborto tardio ao governo estadual. Novamente questionada pela Folha nesta terça-feira (22), a assessoria de imprensa da prefeitura enfim admitiu que foi feita uma “parceria” com a gestão Tarcísio para realizar o procedimento nas gestações acima de 22 semanas em unidades da rede estadual.
Uma primeira nota enviada pelo município, atualizada posteriormente, tratava a “parceria” como “convênio”. A assessoria não esclareceu por que substituiu a palavra, assim como não respondeu a outros questionamentos da reportagem, que pediu mais detalhes sobre o acordo e perguntou se ele havia sido oficializado.
A gestão municipal afirmou ainda que, no caso de gestações avançadas, apenas o atendimento e o acompanhamento durante o processo são realizados em quatro hospitais municipais da capital: Dr. Cármino Caricchio, Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha, Tide Setúbal e Prof. Mário Degni.
Até então, a prefeitura dizia que o atendimento do Programa Aborto Legal acontecia nestes hospitais, sem esclarecer a terceirização de procedimentos para o governo Tarcísio.
A nota enviada à Folha nesta terça afirma que a gestão “cumpre todas as exigências previstas em lei para realização de aborto legal com acolhimento humanitário e sem discriminação”.
“Todas as pacientes que procuram o serviço municipal de saúde têm o atendimento garantido com primeiro encaminhamento nos equipamentos sob sua responsabilidade.”
Em entrevista à imprensa na segunda-feira (22), Nunes voltou a dizer que “a cidade de São Paulo vai continuar cumprindo a legislação”. Questionado se o procedimento será retomado no Vila Nova Cachoeirinha, o prefeito respondeu que “isso é algo que a equipe técnica define”.
Segundo ele, o serviço foi suspenso em razão da necessidade de atender cirurgias eletivas. Em setembro, questionado pela Folha sobre o tema em debate, afirmou que havia uma fila de 1.200 mulheres aguardando cirurgia de endometriose e que técnicos concluíram que o hospital seria o local mais adequado para atender a demanda.
Na ocasião, não admitiu que a prefeitura deixou de realizar o aborto tardio.
A justificativa para a interrupção do serviço no Vila Nova Cachoeirinha é contestada pelo Sindicato dos Médicos de São Paulo, que diz que a decisão foi política. Em nota enviada à Folha, a entidade afirma que o hospital teria capacidade para atender simultaneamente as cirurgias de endometriose e os casos de aborto legal.
A entidade diz ainda que a suspensão foi comunicada pela Secretaria Municipal de Saúde, sem planejamento anterior com a unidade ou seus funcionários.
Após a interrupção, uma ação popular foi apresentada para tentar obrigar o município a retomar o serviço de aborto legal no hospital.
Em decisão colegiada, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que a gestão não poderia ser obrigada a realizar os procedimentos naquela unidade, mas que deveria garantir o atendimento em outras.
Nota técnica assinada em agosto pelo Nudem (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres) da Defensoria Pública de São Paulo afirma que, desde a interrupção do aborto na unidade, o município havia descumprido seu dever legal, especialmente no caso das gestações avançadas. No documento, há uma série de relatos nesse sentido envolvendo casos de pacientes acompanhadas pelo grupo.
Após ter suspendido a resolução do CFM, Moraes também determinou que diretores de hospitais da capital fossem intimados a comprovar se estavam cumprindo sua decisão.