Baixo acesso a serviços de saúde na comunidade do Rio de Janeiro se dá por fatores como falta de confiança nos serviços e conflito armado na região
Preferem fazer um pré-natal do que um preventivo, diz Mariana (nome fictício), uma entrevistada de 25 anos da pesquisa “Saúde sexual e reprodutiva: o que dizem as mulheres da Maré”, feita pela ONG Redes da Maré no conjunto de favelas onde vivem cerca de 140 mil pessoas, na zona norte do Rio de Janeiro.
Mariana engravidou aos 24 anos, enquanto estava na fila para colocar um DIU (dispositivo intrauterino) pelo SUS (Sistema Único de Saúde), e teve o filho. Antes disso ela já havia engravidado, mas sofreu um aborto espontâneo. Ela conta que desde os 14 anos procurou atendimento ginecológico na Clínica da Família, mas nunca conseguiu.
A história dela, segundo as pesquisadoras responsáveis pelo estudo, traduz a de muitas outras mulheres da Maré.
Das 504 entrevistadas pela pesquisa, que ouviu mulheres com idades entre 18 a 39 anos, 54% disseram não ter recebido visitas de agentes comunitários nos últimos seis meses. O percentual é ainda menor entre as que não têm filhos –apenas 28% dizem ter recebido visitas.
Elas até gostariam de ter ido a uma UBS (Unidade Básica de Saúde), segundo a pesquisa, mas 44% delas deixaram de fazer isso. Os motivos são variados. Vão de falta de tempo, que representa 19% dos casos, à presença de conflito armado na região (13%), bem como à falta de confiança nos serviços (11%).
“É algo que está na vivência, no cotidiano dessas mulheres. São os mesmos relatos de várias violências, várias negligências e não acesso a esses direitos básicos”, diz Brenda Vitória, uma das assistentes de pesquisa e articuladora da ONG.
A pesquisa investigou os direitos reprodutivos e a situação do aborto na Maré. Fez isso a partir da transferência da metodologia da PNA (Pesquisa Nacional do Aborto), do Anis – Instituto de Bioética, com questionários feitos nas residências e depositados em urnas. O resultado é uma amostra considerada representativa da população do Complexo da Maré. A população de mulheres da comunidade tem um perfil próximo ao das entrevistadas.
Estima-se que a média de filhos das mulheres na Maré seja 2 —com aumento a 2,3 para as mulheres menos instruídas e queda a 1,8 para as que têm ensino médio e superior.
Segundo Brenda Vitória e Carla de Castro Gomes, principal pesquisadora à frente do estudo, o resultado desafia o senso comum de que moradoras de favela têm muitos filhos. No relatório, os dados são comparados aos do Censo de 2010, quando a taxa de fecundidade nacional era de 1,75 filho por mulher. No Censo de 2022, a taxa caiu para 1,57.
O momento em que as mulheres da Maré têm filhos é significativo para ilustrar o cenário de baixo acesso aos serviços de saúde –49% delas se tornaram mães entre os 13 e os 17 anos, sendo 21% dos 13 aos 15 anos e 28% dos 16 aos 17 anos.
No Brasil, a idade média em que as mulheres têm seus primeiros filhos era de 27,7 anos em 2020, segundo dados do IBGE.
Para Gomes, o dado é reflexo da falta de acesso a contraceptivos, mas também da dificuldade em encontrar espaços de educação sexual.
“Logo nessa faixa etária elas não estão tendo acesso a consultas ginecológicas ou educação sexual nas escolas. Elas iniciam a vida sexual sem qualquer suporte, sem qualquer tipo de orientação ou informação”, afirma.
Menores de 18 anos não foram ouvidas pela pesquisa. Mas a socióloga afirma que, durante as entrevistas, muitas mulheres disseram não ter aprendido nada durante a adolescência.
“É uma recorrência elas dizerem que não sabiam nada, que não aprenderam nada, que não tiveram uma educação em casa. Muitas vezes as mães tiveram uma educação dura, em que a sexualidade é tratada como tabu, então não se fala sobre”, afirma. “Essa expressão, ‘não sabia de nada’, aparecia muito nos casos das mulheres que engravidaram bem jovens.”