Volta a tramitar dispositivo que proíbe qualquer tipo de aborto, favorece estupradores e dificulta reprodução assistida. Além de misógina, proposta é tentativa de reaglutinar bolsonarismo. Feministas preparam-se para ir às ruas
Em busca de reorganizar-se em torno de uma pauta que aglutine seus seguidores, a ultradireita conseguiu uma vitória perigosa. Na tarde de quarta, 27/11, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados uma reedição do PL do Estuprador: o projeto de emenda constitucional 164/2012, que busca proibir todo tipo de aborto no Brasil. Desta vez, a tentativa é feita por meio de um dispositivo insidioso: inclui-se no artigo 5º da Constituição a expressão “desde a concepção”, no trecho que trata dos direitos e garantias fundamentais e prevê a “inviolabilidade do direito à vida”.
A autoria da PEC é do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que teve o mandato cassado em 2016. A relatora da proposta na CCJ foi a deputada e vice-presidente do colegiado Chris Tonietto (PL-RJ), que deu parecer favorável. Foram 35 os votos que permitiram que a PEC avance na casa, ante 15 contrários. O próximo passo é formar uma comissão especial para avaliar a proposta. Em entrevista ao Congresso em Foco, o líder do governo na CCJ, Bacelar (PV-BA), afirmou que os partidos ligados à esquerda agora devem buscar balancear essa nova comissão com deputados contrários à proibição total do aborto.
“Esses projetos que têm aparecido, relacionados aos direitos das mulheres, são criminosos”, critica Ana Maria Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), em entrevista ao Outra Saúde. “Porque acobertam crimes de estupro, que penalizam mulheres que são violentadas e engravidam. Submetem as mulheres a uma tortura psicológica. São projetos de vida destruídos. É isso que essa gente vem tentando reacender no Brasil e no mundo.”
Ana alerta que essa PEC é ainda mais perigosa que o projeto de lei 1904, que equiparava o aborto após a 22ª semana gestacional ao crime de homicídio – batizado pelo movimento feminista de “PL do Estuprador”. Após intensa mobilização da sociedade, o PL saiu da pauta do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a nova investida contra os direitos reprodutivos reacende o debate.
O aborto só é permitido no Brasil em três casos: feto com anencefalia, situações de risco à gestante e gravidez após um estupro. Ainda assim, o serviço oferecido pelo SUS não alcança todas as mulheres que precisam dele, o que compromete a garantia do direito. Para a PEC que tramita agora vingar, precisa ser pautada por Lira e aprovada por pelo menos três quintos da casa; nesse caso, vai em seguida ao Senado. Mas, se passar, ela representará um imenso passo atrás. Mulheres serão obrigadas a carregar um bebê que não tem chance de vida ao nascer. Colocarão suas vidas em grande risco. Ou mesmo poderão gerar uma criança de um homem que as violentou – que muitas vezes são parte de sua própria família. Haverá mais mães menores de 14 anos.
Mas Ana alerta que os retrocessos vão muito além: “Chamo a atenção para o fato de que a aprovação de hoje compromete pesquisas e aplicações terapêuticas de células-tronco e acarreta mudanças drásticas para a reprodução assistida, fertilização in vitro. Com o novo texto, serão proibidas. O direito desde a concepção penaliza não só mulheres que necessitam interromper gravidez e têm esse direito. Quem quer engravidar também será punida”.
No momento em que a PEC estava sendo pautada na CCJ, integrantes de movimentos feministas ocuparam a sala para manifestar-se contrárias. Gritavam “Estuprador não é pai, criança não é mãe”. A sessão foi suspensa por 50 minutos e transferida duas vezes de auditório, para barrar a participação das manifestantes. Sâmia Bonfim (PSOL-SP) foi uma das deputadas que defendeu o grupo que protestava contra a PEC: “Elas estão se manifestando. Vocês não se importam com deputados xingando as pessoas de assassinas, pedindo golpe de Estado… mas mulheres se manifestando não pode?”.