Estudo da Abrasco mostra que a exposição aos agrotóxicos altera os óvulos, provoca gestações de risco, abortos repetitivos e afeta os bebês ainda no ventre, desencadeando quadro de má formação congênita e cânceres.
“A minha vida foi devastada pelos agrotóxicos”, crava a psicóloga Márcia Xavier, 34 anos, moradora da Comunidade Tomé, em Limoeiro do Norte, no Ceará. A frase sintetiza um rastro de morte, doença e dor deixado por essas substâncias em sua vida. A primeira filha, Sofia Xavier, que nasceu prematura, quando tinha apenas 1 ano e seis meses, apresentou crescimento das mamas e pelos pubianos. “Ela fez um ultrassom pélvico que mostrou que os seus órgãos reprodutivos estavam se desenvolvendo precocemente”, relata a mãe.
Sofia apresentava sinais de puberdade em um corpo frágil que sequer havia dado os primeiros passos. Para a mãe, era desesperador ver a filha se tornando mulher antes do tempo. “Eu só pensava em conseguir fazer isso parar, então corri para a médica”, recorda. Os sintomas foram controlados com mudanças na dieta alimentar. “A médica retirou o leite de gado, frango, alimentos com gordura”, pontua.
Além de Sofia, diversas outras crianças da comunidade passaram a apresentar sintomas semelhantes, o que levou a cientista da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ada Pontes, a realizar uma pesquisa em busca da origem de tais problemas.
“Ela [Ada] colheu sangue, urina e água de sete famílias, inclusive a nossa. Em cinco delas foi encontrado um produto banido do Brasil no início dos anos 90”, afirma Márcia.
A pesquisa a que Márcia se refere chama-se “Más – formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE)”, produzida por Ada, que também integra o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas), ligado a UCF. Realizada em 2017, a investigação constatou que a causa da puberdade precoce de Sofia e de outros problemas reprodutivos encontrados na comunidade tinham relação com a concentração de organoclorado e piretroides no sangue e urina.
Os organoclorados são compostos químicos usados como inseticidas. Um dos produtos que contêm esse ingrediente e que ficou bastante conhecido é o DDT. Ele provoca alterações hormonais com diversas consequências para a saúde reprodutiva das mulheres. Por sua capacidade de permanência na água e no solo, o seu uso foi proibido em 1985. Mesmo após quatro décadas de proibição, os resíduos desse produto ainda dilaceram a comunidade.
Já os piretroides, também são inseticidas e são utilizados de forma massiva no Brasil, sem que se tenha conhecimento da adoção de boas práticas agrícolas para evitar a contaminação. Por ser classificada como sendo de baixa toxicidade, essa substância é usada em inseticidas domésticos. Segundo o levantamento, das 19 amostras coletadas, 11 apresentaram concentrações de organoclorados. Das 17 amostras coletadas, 7 apresentaram níveis concentrados de piretroides.
Após descobrir o resultado, Márcia questionou a forma como essa substância a contaminou. “Eu nunca trabalhei como agricultora, minha filha também não, então, como fui contaminada?”, indigna-se. Segundo a pesquisa, a contaminação pode ter ocorrido porque, durante muito tempo, Márcia lavou a roupa do marido, que é agricultor e manipula tais produtos nas lavouras de banana e melão.
Além disso, a comunidade Tomé, reduto de extensas lavouras de fruticultura irrigada sempre recebeu pulverizações aéreas e terrestres. Antes do adoecimento da filha, a própria Márcia, aos dez anos, teve “uma contaminação por agrotóxicos na pele, que ficou fortemente irritada e repleta de micoses”, relembra.
“O meu tratamento foi feito com injeções e outras medicações. Eu tive que, por um tempo, tomar banho com água mineral”, relembra. A fonte de água que abastece a comunidade Tomé é a mesma usada na irrigação das lavouras de frutas. Mas o pior ainda estava por vir. Em 2010, os agrotóxicos deixaram a marca mais trágica na vida de Márcia. O seu pai João Maria Filho, conhecido por Zé Maria do Tomé, foi alvo de uma emboscada. Ele teve a vida ceifada por pistoleiros que o alvejaram com 25 tiros.
Zé Maria denunciava, de forma combativa, os danos causados pelos agrotóxicos na comunidade. O nome do ativista, que teve apenas um dos seus seis algozes condenado em outubro deste ano, intitula a Lei 16.820 de 2019. A Lei Zé Maria do Tomé é a primeira legislação estadual no Brasil que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará. Três gerações e uma única história de dor e adoecimento que tem os agrotóxicos como algozes.
É indiscutível que a morte do pai de Márcia é a expressão mais severa do problema causado pelos agrotóxicos. No entanto, vale destacar que nas vidas das mulheres, essas substâncias causam danos que vão desde o ventre até a velhice, como afirma a nota técnica “Saude Reprodutiva e a Nocividade dos Agrotóxicos”, produzida pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Segundo a médica sanitarista e membro do Grupo de Trabalho em Saúde e Meio Ambiente da Abrasco, Lia Giraldo, as pulverizações aéreas podem afetar locais diferentes daqueles onde foi realizada a aplicação. “Isso ocorre pela deriva dos agrotóxicos carreados pelos ventos, pela contaminação da água, dos alimentos, pelo uso doméstico ou na lavagem de roupas e equipamentos contaminados.” Deriva é o desvio de rota dos agrotóxicos pela corrente de ar ou pelas águas subterrâneas.
Em 2023, o Ceará foi o terceiro maior produtor de melão no Brasil, com 65.887 toneladas. O estado figura entre os 10 maiores produtores de frutas do país, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frutas (Abrafrutas). Essa atividade intensiva de produção de commodities foi o que comprometeu a infância da filha de Márcia, ceifou a vida do pai dela, e causou inúmeros problemas em meninas e mulheres da comunidade.