(Luciana Nunes Leal, enviada especial a Cádiz, Espanha, para O Estado de S. Paulo) Roberto Viciano Pastor, chamado de arquiteto das constituições da Venezuela e da Bolívia, defende na reunião da SIP que trabalho nos meios de comunicação é um serviço público
Chamado de “pai” ou “arquiteto” das constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia, onde trabalhou como consultor nos últimos anos, o professor de Direito Constitucional da Universidade de Valência, Roberto Viciano Pastor, de 49 anos, não perdeu a calma diante da plateia que insistia nas perguntas sobre as ameaças à liberdade de imprensa e de expressão naqueles países. “Já estava preparado”, comentou, depois do debate na Reunião de Meio de Ano da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).
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Em entrevista ao Estado, Viciano defendeu a tese de que o trabalho dos meios de comunicação é um serviço público. “Como é serviço público a distribuição de eletricidade ou de água, o que não quer dizer ingerência ou abuso de controle do poder público”, afirmou. Reconheceu, no entanto, não saber que critérios definiriam uma boa ou má prestação do serviço. “Ainda estamos na primeira parte do debate. Não demos o salto porque não há consenso”, justificou.
Os trabalhos de consultoria para países da América Latina são feitos pelo professor e sua equipe do Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS), sem vínculo com a Universidade de Valência e que se define como “uma organização política não partidária dedicada à produção de pensamento crítico e ao trabalho cultural e intelectual para fomentar consensos de esquerda”. Admirador da ideologia de direita na juventude, Viciano hoje se define como partidário do “socialismo democrático”.
Qual foi seu papel na elaboração das constituições de Bolívia, Equador e Venezuela? O senhor trabalhou diretamente com os governos?
Faço parte de uma equipe de professores espanhóis interessados no constitucionalismo latino-americano e, quando éramos muito jovens e não tínhamos capacidade de fazer assessoria, seguíamos à distancia. Estudamos os processos democráticos de América Latina desde 1991. Em 1998, no Equador, trabalhamos com a Assembleia Constituinte, em um programa de cooperação internacional do governo espanhol. Não trabalhamos com o governo. Na Venezuela fizemos um convênio com a Assembleia Constituinte também, em um contrato com a Procuradoria Geral da República. No caso boliviano, foi um programa próprio que fizemos com nossos fundos. Nunca trabalhamos diretamente com os governos.
O senhor dialoga com frequência com os presidentes Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez? Trocam ideias, têm proximidade?
Conheci presidentes da Venezuela, da Bolívia, do Equador e de outros países da América Latina, da Argentina, do Chile. Em razão do meu trabalho tenho relação com muitos presidentes da América Latina, mas esporádica.
Não discutiu com eles as questões da Constituição?
Não, nosso trabalho foi com os parlamentos eleitos para discutir a fazer as constituições.
Existe uma grande discussão sobre a tese de que o trabalho dos meios de comunicação é um serviço público. O senhor levou esta ideia para os países onde trabalhou?
Este tema não se discutiu nas constituintes, não está contemplado nas constituições. O que está nos textos constitucionais se refere à questão das concessões de telecomunicações, o que é normal. Não se fala na comunicação em si.
Mas esta é a ideia que o senhor defende, que os meios de comunicação prestam um serviço público?
Óbvio. Eles servem para que haja um debate político no país. Sem os meios de comunicação não haveria debate democrático.
Esta tese não deixa os meios de comunicação submissos aos governos?
Não, o fato de ser um serviço público não significa que tenha ingerência ou controle abusivo do poder público. Um serviço público pode ser de eletricidade, e não quer dizer que o governo vai dizer como se produz eletricidade. Mas se uma companhia não presta adequadamente o serviço público, terá que ser tomada uma medida porque está causando uma disfunção no funcionamento da sociedade.
Mas no caso da eletricidade se sabe exatamente o que é não prestar um serviço adequado. O que seria não prestar um serviço adequado no caso dos meios de comunicação?
Não sei. Estamos na primeira parte do debate: é ou não é um serviço público? Se é, até onde tem que haver uma intervenção do poder público para garantir o serviço público? O que tem que ser garantido e o que seria um abuso dos poderes públicos frente os que realizam o serviço, seja no setor privado ou público? Ainda não demos o salto, porque não há consenso de social que seja um serviço público. Quando se assumir que é um serviço público, veremos como funciona, como sempre se fez no Direito. Primeiro se decidiu que a distribuição de água é um serviço público e depois se pensou o marco jurídico que rege este serviço. O papel dos meios de comunicação em sociedades democráticas não está em discussão só na América Latina, mas na Espanha, na França, na Itália, na Alemanha. O tribunal constitucional espanhol disse que é um instrumento fundamental para a comunicação pública. Se é assim, pode-se deduzir que se está prestando um serviço público, o que não é nada negativo. Como o serviço público de água.
Se a água não chega às casas das pessoas, está claro que há um problema. No caso da informação, é uma avaliação mais subjetiva. Como avaliar a prestação do serviço?
Sim, se a água não chega as pessoas morrem por não beber, é muito mais grave falhar o serviço público de água. Mas dizer que é um serviço público não quer dizer que é restritivo nem anulador da liberdade. Apenas que é necessário para o funcionamento da sociedade e, se é necessário, qual o marco regulatório necessário? Sobre isso não tenho opinião formada. Mesmo no serviço de água, não se quer a eliminação do setor privado.
Informes de países como Argentina, Equador e Venezuela apresentados ontem na SIP dizem que os governos tratam os críticos como inimigos o traidores. O que pensa sobre isso? Os presidentes precisam ter essa atitude para manter sua autoridade?
Acredito que em toda sociedade democrática é necessária a crítica e o contraste de opiniões. Não se pode estabelecer uma dinâmica de amigos ou inimigos, me parece incorreto.
Politicamente, o senhor acredita que os governos Chávez, Morales e Correa estão no caminho certo?
Eu falei aqui das constituições dos países, não da ação política dos governos. É difícil um governo todo bom ou todo mal. Precisaria de uma análise ponto a ponto.
Outra crítica é a concentração de poder do Executivo nesses países, com o Legislativo e o Judiciário submisso ao governo. O senhor concorda com este modelo?
Temos uma crise mundial da definição dos Poderes. A cidadania tem a sensação de que não há equilíbrio. Acho que vocês creem que algumas coisas só acontecem na América Latina, mas acontecem no resto do mundo. O movimento dos indignados na Espanha diz exatamente que não há equilíbrio de Poderes e que o partido que ganha se coloca em uma posição demasiadamente hegemônica. Quando fizeram uma pesquisa na Espanha de insatisfação como o modelo político, as pessoas falaram que não há suficiente separação de Poderes. É um debate no mundo inteiro.
Mas em países como Espanha, França ou Itália não há um debate sobre ameaças à liberdade de imprensa e de expressão como há em muitos países da América Latina, certo?
Na Europa há um debate muito forte sobre o papel dos meios de comunicação, que não estão transmitindo o debate político ou o estão fazendo de acordo com seus interesses políticos. Muitos cidadãos na Europa questionam por que os meios de comunicação não criticam tao fortemente as políticas de cortes na área social. Acreditam que os meios não estão em sintonia com a população, que está reagindo.
É verdade que o senhor, quando jovem, militou em um grupo da direita católica e depois se tornou marxista?
Quando eu era muito jovem, dos 16 aos 18 anos eu tinha uma ideologia mais de direita, mas não militei em organizações. Não tinha identidade com nenhum modelo político concreto. Depois, houve uma evolução para posições democráticas, mas não sou comunista, como dizem alguns meios de comunicação. Tive que entrar com uma ação judicial contra um jornal para retificar porque dizia que eu pertencia um partido, o que não era verdade absolutamente. Mandei uma carta, não corrigiram. Só quando fui à Justiça. Acho que posso enquadrar-me no socialismo democrático.
Venezuela, Bolívia e Equador não teriam um caminho mais democrático de mudança que não concentrasse tanto poder nos governos?
Eu ou qualquer pessoa pode ter opiniões favoráveis ou desfavoráveis de algumas políticas, mas não se pode dizer que não são países democráticos. Existem eleições, liberdade de imprensa, liberdade de partidos políticos, de manifestação. Ninguém pode dizer que não são democráticos.
Mas muitos jornalistas nos informes à SIP relatam grandes dificuldades de acesso a informações públicas. Não é uma restrição à liberdade de imprensa?
Sou militante ativo e partidário do pleno acesso à informação, porque é do interesse do cidadão. Qualquer mecanismo de limitação me parece negativo em uma sociedade democrática.
Por que o senhor defende que a Bolívia tenha um sistema unicameral?
Sou a favor do sistema unicameral em algumas situações. Na Espanha, por exemplo, porque o Senado não tem muito sentido. Muita gente pensa que é um gasto inútil. Tem que pensar as ideias para cada país. Estados federais, como o Brasil ou os Estados Unidos, sim, devem ser bicamerais. Na Bolívia, acho que não era necessário um sistema bicameral porque não é um Estado federal. Quando me perguntaram, eu disse o que acredito que me parece melhor. Mas não houve mudança.
Acesse em pdf: ‘Sem os meios de comunicação não haveria debate democrático’ (O Estado de S. Paulo – 22/04/2012)