O afrouxamento das restrições nas políticas de conteúdo das plataformas digitais é uma bola de neve que passa por cima da diversidade
Nos últimos dias, assisti repetidas vezes ao vídeo em que o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, anuncia as mudanças nas políticas de moderação de conteúdo das suas plataformas (Instagram, Facebook e Threads). A fala, que vem sendo dissecada em todo o mundo, tenta sugerir que a empresa está preocupada em garantir a liberdade de expressão e combater a censura aos usuários.
Na prática, os cachinhos dourados do Zuckerberg não convencem ninguém de que as novidades têm intenções angelicais. A decisão é estratégica e marca um posicionamento político que coloca a Meta de mãos dadas com a extrema direita.
Em resumo, as medidas divulgadas pelo empresário incluem a substituição do sistema de checagem de fatos por notas da comunidade – a exemplo do que já faz a rede social X, de Elon Musk. Outros aspectos são a “simplificação” das diretrizes de conteúdo, o afrouxamento das punições para quem descumpre tais diretrizes, a volta do conteúdo cívico ou político e a realocação das equipes da Meta, saindo da Califórnia para o Texas. Esta última ação sugere, segundo Mark Zuckerberg, menos “viés progressista” dos moderadores e menos exigências legais para a empresa.
Em sua fala, o dono da Meta diz que começou a “construir as redes sociais para dar voz às pessoas” e que “simplificar as políticas de conteúdo é dispensar uma porção de restrições em tópicos como imigração e gênero, que estão em descompasso com o discurso predominante na sociedade“.
Para Zuckerberg, “o que começou como um discurso para ser mais inclusivo, vem sendo usado para silenciar opiniões”. O empresário finaliza dizendo que “é hora de focar em reduzir erros, simplificar os sistemas e voltar às nossas raízes de dar voz às pessoas“.
Raízes machistas, homofóbicas, racistas
Dos cinco minutos preocupantes de pronunciamento, uma frase em particular ficou comigo: “É hora de voltar às raízes”. Zuckerberg utiliza essa expressão mais de uma vez, como se isso significasse apenas simplificar os mecanismos de uso do Instagram, do Facebook e do Threads. Como se ‘o problema’ fosse a moderação, e não os conteúdos. E como se, voltar às raízes, no que diz respeito às pautas de grupos minorizados, como as mulheres, fosse algo positivo. Na prática, essas medidas vulnerabilizam ainda mais as mulheres.
Essa ideia de “voltar às raízes” aproxima o discurso do Zuckerberg de centenas de outros conteúdos que eu, como pesquisadora da área de Comunicação, estudei ao longo de 2024. As ideias de “resgatar antigos valores”, “restaurar a ordem patriarcal”, “recuperar a divisão sexual das famílias e da sociedade”, “retomar os papéis que homens e mulheres ocupavam nos velhos tempos”. Tudo isso são desejos manifestados por muitos dos influenciadores digitais cujos canais foram analisados na pesquisa sobre Misoginia no YouTube, que publicamos em dezembro no NetLab – da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Ministério das Mulheres.
No estudo, analisamos computacionalmente mais de 76 mil vídeos do YouTube e identificamos 137 canais com conteúdos que promovem ódio, aversão, desprezo e/ou controle das mulheres.
Por mais de oito meses, assistimos e analisamos centenas de vídeos com abordagens diversas – alguns sugerem que homens não devem se relacionar com mulheres, enquanto outros ensinam técnicas de conquista sexual, por exemplo. O que eles têm em comum é questionar os avanços dos direitos das mulheres e quem os defende: querem voltar às raízes. Querem retornar para um tempo em que comportamentos misóginos eram naturalizados, incentivados e nunca questionados.
O contexto legal antes do anúncio
Embora a pesquisa diga respeito ao YouTube, e não às plataformas da Meta, os ‘ideais” e ‘valores’ que os canais com conteúdo misógino propagam não se restringem aos vídeos. Muitos dos influenciadores analisados também mantêm perfis e páginas com milhões de seguidores no Instagram, por exemplo.
Nas plataformas da Meta, contudo, o discurso de ódio não é tão explícito, justamente porque as políticas de conteúdo são consideradas – até então -, por muitos desses influenciadores, como mais duras do que as do YouTube. Ou, ainda, porque os mecanismos de identificação de discurso de ódio são, muitas vezes, mais eficientes – até quando? Para essa galera, o anúncio de Zuckerberg veio a calhar.
O timing do anúncio também não surpreende no contexto legal. Menos de dois meses atrás, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia a responsabilidade das plataformas digitais sobre os conteúdos publicados por usuários e a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Esse debate pode ter sido um dos gatilhos para as novas políticas da Meta, já que o próprio Zuckerberg menciona em seu vídeo “as cortes secretas” sul-americanas.
Isso é coerente com o comportamento das chamadas Big Tech em outro caso recente que também gerou reações parecidas: a discussão do PL 2630. Apelidado de PL das Fake News, o projeto virou alvo de campanhas de desinformação e acabou esvaziado graças ao lobby dessas empresas.
A misogonia que dá lucro
Os donos das plataformas de mídias sociais naturalmente não querem ser responsabilizados pelos conteúdos gerados pelos usuários. Eles também não querem deixar de lucrar com o que é publicado. A pesquisa do NetLab UFRJ mostrou que influenciadores misóginos produzem conteúdos que somam bilhões de visualizações no YouTube e ganham muito dinheiro no processo, gerando receita também para a plataforma, por meio de anúncios, SuperChat, programas de membros, assinaturas, entre outros meios. Esse processo se reproduz em todas as redes sociais.
Moderar conteúdo dá trabalho e custa caro. Identificar discurso de ódio não é uma tarefa tão simples e óbvia. Perfis, páginas e canais com conteúdos ‘polêmicos’ mobilizam amplas audiências, mantêm as plataformas em movimento, geram lucro para todos os envolvidos – o prejuízo fica somente com quem é vitimado. Não é segredo para ninguém quem será beneficiado ao transformar as plataformas da Meta em terra sem lei. Também sabemos quem mais será atingido: mulheres, crianças, população LGBTQIAPN+ e negra.
Não é difícil antecipar as consequências disso para as políticas internacionais de promoção de diversidade e igualdade de gênero – vale lembrar que a Meta também encerrou seu programa de diversidade e inclusão na contratação de profissionais. Prática que o McDonalds também resolveu abandonar recentemente, para citar somente um exemplo.
“Em descompasso com o discurso dominante”
As novas políticas da Meta – e as demais que devem vir na esteira dela – complexificam um cenário que já não era favorável para grupos minorizados. Embora tenham se tornado, inegavelmente, espaços que permitem ampliar o alcance de pautas feministas, LGBTQIAPN+ e de mobilização por igualdade racial, nos últimos anos, as redes sociais e seus algoritmos vêm sendo cada vez mais manipulados contra a diversidade.
O racismo algorítmico é um exemplo forte dessa influência negativa, assim como os recentes casos do uso de inteligência artificial para produção de deepfakes sobre mulheres candidatas a prefeituras no Brasil. Como o projeto MonitorA vem mostrando há vários anos, as redes são usadas intensamente para atacar mulheres que disputam eleições regionais e nacionais. Mesmo estando em menor número, elas são as mais ofendidas na internet.
Até investigar as ofensas vem se tornando mais difícil. As mesmas plataformas que querem retirar as restrições de conteúdo em prol da “liberdade de expressão” simultaneamente dificultam o acesso de instituições de pesquisa a seus dados. Vale lembrar que a própria Meta tirou do ar, em agosto, a ferramenta de análise de dados que era utilizada no mundo todo, o Crowdtangle. Dar passe livre para atacar mulheres e reduzir sua participação política não deixa de ser um jeito de “voltar às raízes”.