Direitos das vítimas de estupro: quando o conservadorismo político sobrepõe a lei, por Fábio Felix

25 de março, 2025 Brasil de Fato Por Fábio Felix

É essencial que as instituições resistam a pressões político-ideológicas

Em um país que registra mais de 70 mil casos de estupro por ano, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o direito à interrupção legal da gravidez resultante de violência sexual – garantido em lei desde 1940 – ainda precisa ser defendido contra investidas obscurantistas. A recente suspensão da Recomendação Conjunta Nº 02/2025 do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) é mais um capítulo deste embate que coloca em risco a dignidade e a vida de mulheres e meninas já violentadas.

A recomendação em questão, elaborada por promotores especializados em direitos humanos e saúde, nada mais fazia do que orientar a Secretaria de Saúde do DF a cumprir a legislação: estruturar um fluxo adequado de atendimento para os casos de interrupção legal da gestação previstos no Código Penal e ratificados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Não se tratava de criar novos direitos, mas de garantir o acesso a direitos já estabelecidos.

Causa perplexidade que, oito décadas após a previsão legal do aborto em caso de estupro, ainda tenhamos que enfrentar obstáculos institucionais para sua implementação. A suspensão da recomendação, após pressão de parlamentares e grupos conservadores, revela o descompasso entre a legislação brasileira e o fundamentalismo religioso que tenta capturar as estruturas do Estado.

É importante relembrar que somos constitucionalmente um Estado laico. A separação entre Estado e religião não é mero detalhe, mas condição fundamental para a democracia e para a garantia de direitos. Quando convicções religiosas particulares determinam políticas públicas, quem sofre são justamente os grupos mais vulneráveis – neste caso, mulheres e meninas vítimas de violência sexual, muitas delas crianças e adolescentes.

Os dados são alarmantes: aproximadamente 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, e milhares delas engravidam anualmente em decorrência desta violência brutal. A negação do acesso à interrupção legal da gestação não apenas viola direitos fundamentais, mas impõe uma segunda violência às vítimas, forçando-as a levar adiante gestações que perpetuam o trauma e, muitas vezes, colocam em risco suas próprias vidas – especialmente quando se trata de meninas cujo corpo não está preparado para uma gravidez.

O Relatório do Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil (Unicef), aponta que de 2021 a 2023, tivemos 164.199 casos de violências sexuais, ou seja, a cada 8 minutos uma ocorrência é realizada. Não podendo prever os casos de subnotificação. No Distrito Federal, segundo informações do portal InfoSaúde da Secretaria de Estado de Saúde, entre 2020 e 2024, foram realizados 805 partos em meninas com idades entre 11 e 14 anos. Em 2025, de acordo com dados disponibilizados, já foram realizados 13 partos, na mesma faixa etária.

Retrocessos

Do ponto de vista da saúde pública, a Organização Mundial da Saúde reconhece que o acesso à interrupção segura da gestação é essencial para a redução da mortalidade materna. Estudos demonstram que a negação desse acesso não reduz o número de abortos, mas apenas os torna mais perigosos, afetando principalmente mulheres negras e em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

E não podemos ignorar os graves impactos psicológicos da gravidez forçada resultante de estupro. Pesquisas científicas robustas indicam que obrigar uma vítima a manter essa gestação está associado a um risco significativamente maior de desenvolvimento de transtornos como depressão, ansiedade e Transtorno de Estresse Pós-Traumático, além de elevadas taxas de ideação suicida.

O Brasil compõe diversos tratados internacionais que obrigam o Estado a eliminar a discriminação e a violência contra crianças, adolescentes e mulheres, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Americana de Direitos Humanos, que nosso país é signatário. O Comitê Cedaw já manifestou, em diversas ocasiões, sua preocupação com as barreiras enfrentadas pelas mulheres brasileiras no acesso à interrupção legal da gestação.

A suspensão da Recomendação Conjunta Nº 02/2025 representa, portanto, não apenas um desrespeito à legislação nacional, mas também uma violação de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos humanos.

É particularmente preocupante quando instituições que deveriam atuar como guardiãs da ordem jurídica e dos direitos fundamentais parecem ceder a pressões externas de natureza político-ideológica. O Ministério Público tem o dever constitucional de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis – independentemente de posições políticas ou crenças religiosas particulares.

A politização desta questão por parte de parlamentares conservadores revela um profundo desprezo pelos direitos das vítimas de violência sexual e uma tentativa inaceitável de instrumentalização política do sofrimento alheio. Utilizar a dor de mulheres e meninas estupradas como plataforma política é uma forma de violência que não pode ser tolerada em uma sociedade que se pretende democrática e civilizada.

Acesse o artigo no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas