Sinais de retrocesso para a população LGBTQIAP+ nunca estiveram tão explícitos como agora, por toda parte do globo. Vemos a ascensão da extrema direita na Alemanha, país que conheceu de perto o nível mais cruel ao qual ideologias podem levar a humanidade; gestos escancaradamente nazistas praticados por um bilionário dono de big techs – e membro do alto escalão do governo de Donald Trump –, acompanhados de um discurso ultraconservador e transfóbico. No Brasil, o Dossiê: Assassinatos e violências contra pessoas trans publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a ANTRA, revela que o cenário também tem piorado.
Agendas políticas globais chamadas “anti-trans” seguem em constante crescimento e alertam para a necessidade de serem questionadas e combatidas com afinco. Por aqui, porém, a população trans e travesti é refém do factual: só ganha espaço nos grandes veículos quando seus corpos participam da efetivação de violências.
Como exemplo, é possível citar o caso de Erika Hilton, uma das deputadas federais mais relevantes do Brasil, que sofreu, esse mês, um atentado à sua identidade pelo governo americano, quando teve em seu visto o não reconhecimento de sua identidade feminina, sendo sinalizada como uma figura masculina, escancarando uma transfobia institucional e explícita, vinda de um país que, para além do presidente Donald Trump, foi berço de grandes movimentos históricos para a população LGBTQIAP+. A problemática em questão é justamente para refletirmos sobre o ponto de partida desse retrocesso, em que a sociedade em geral parece normalizar essas violências.
No caso de Hilton, houve um ataque simbólico, pelo fato de a deputada ser hoje uma das principais figuras da política de esquerda no mundo. Mas engana-se quem acha que o gesto parte unicamente do chefe do Executivo dos Estados Unidos. No mesmo dia em que o episódio da deputada ocupava os noticiários do país, a Suprema Corte Britânica também decidiu que era hora de retroceder nos direitos dessa população.
Por unanimidade, a corte decidiu que a definição legal de “mulher” deve ser baseada no sexo biológico, de acordo com a Lei da Igualdade britânica. Essa decisão simboliza uma terrível derrota na longa batalha judicial que afetará como direitos pautados pelo sexo poderão ser interpretados na Escócia, Inglaterra e País de Gales.
A decisão favoreceu o grupo ativista escocês For Women Scotland (FWS), que se opõe às reformas propostas para garantir direitos civis à população trans, como o direito de alterar o gênero registrado em documentos oficiais por meio de autodeclaração. O grupo defende que proteções fundamentadas no sexo deveriam abranger exclusivamente mulheres cisgêneras. Apesar disso, o juiz Hodge, responsável ressaltou que a sentença não deve ser vista como uma vitória completa para nenhum dos lados e reafirmou que a legislação segue garantindo ampla proteção contra a discriminação às pessoas trans.
Já no Brasil, poucos dias antes, o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial da União uma resolução em que veta o acesso a terapias hormonais para menores de 18 anos, proibindo o bloqueio da puberdade, e aumentou a idade mínima para cirurgias de transição de gênero.
Estamos diante de uma simples coincidência ou do escancaramento de uma política orquestrada contra a população trans e travesti?
O silêncio cúmplice da imprensa
O cenário das pessoas trans no Brasil é historicamente marcado por uma brutalidade que, aparentemente, não gera mais comoção aos olhos da sociedade e tampouco da mídia. Não por acaso, o país lidera há 16 anos consecutivos o ranking global de assassinatos contra essa população, refletindo uma realidade de violência estrutural e institucionalizada, segundo dados da ANTRA.
Por outro lado, existe um comportamento que escancara a extensão de uma operação já naturalizada pela sociedade: o apagamento dessas pessoas. É urgente questionarmos o modo como a violência contra pessoas trans e travestis tem sido tratada pela mídia e naturalizada pela sociedade. São esses sujeitos que têm suas histórias reduzidas a notas marginais, constantemente vinculadas apenas à brutalidade que sofrem, sem que haja uma provocação crítica sobre o motivo da reincidência desses crimes.
Esse padrão revela não apenas a ausência de interesse genuíno pelo debate acerca da segurança desse grupo, mas também reflete um desconforto coletivo em enfrentar questões fundamentais:
Por que pessoas trans e travestis seguem sendo alvo de assassinatos sistemáticos e por que insistimos em manter um silêncio cúmplice diante dessa realidade brutal?
Enquanto não encararmos essas perguntas, estaremos colaborando ativamente com o apagamento cotidiano dessas vítimas.
Os dados da ANTRA revelam ainda um quadro dramático de subnotificação, negligência e preconceito sistemático nas investigações policiais, o que perpetua a impunidade e agrava a vulnerabilidade dessas vidas. Conforme publicado no dossiê Assassinatos e violências contra pessoas trans, assim como vimos no episódio da deputada Erika Hilton com o governo americano, a transfobia institucional se faz presente no cotidiano da população trans e travesti no Brasil, uma vez que o respeito à identidade de gênero em casos de vítimas transfemininas não é respeitado. Elas são registradas como indivíduos do “sexo masculino”, o que aumenta a subnotificação, a imprecisão nos números de casos e colabora para a não identificação dos crimes motivados pelo ódio a essa população.