Entre as décadas de 80 e 90, houve uma esterilização em massa de mulheres brasileiras, especialmente as negras e pobres. A reportagem conta sobre esse período e faz um paralelo com o cenário atual
No final da década de 80, a recém-formada médica Jurema Werneck trabalhava como parte de uma equipe de agentes de saúde em favelas do Rio de Janeiro (RJ), e observou uma tendência que lhe chamou a atenção: um alto número de mulheres esterilizadas. “Detectei esse fenômeno, que era surpreendente, porque esterilização não era algo que naturalmente estivesse na cesta de contraceptivos disponíveis; era uma cirurgia”, diz a médica, hoje com 63 anos de idade, cofundadora da organização Criola e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
O que Jurema observou naquele período foi definido a seguir como um movimento de esterilização em massa de mulheres no país, em particular das negras e pobres. A partir dessa constatação, o movimento feminista negro passou a pautar a questão da esterilização em massa de mulheres negras e das políticas de saúde reprodutivas que vigoravam entre a décadas de 80 e 90.
Nesta reportagem, vamos abordar essa luta que se desdobrou em um encontro nacional de mulheres negras para discutir direitos reprodutivos, em uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional para investigar a esterilização em massa e o investimento internacional nesse âmbito, e, por fim, na Lei do Planejamento Familiar, de 1996. Vamos ainda, fazer um paralelo com o cenário atual, investigando como esse problema se perpetua mesmo após significativos avanços.
Laqueadura é uma cirurgia para a esterilização definitiva, para evitar a possibilidade de gravidez, em que as trompas da mulher são amarradas ou cortadas, evitando que o óvulo e os espermatozóides se encontrem.
Esterilização em massa e genocídio das populações negras
Em 1986, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou uma edição especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Entre outros dados, o estudo apresentava índices relativos aos métodos contraceptivos utilizados pelas mulheres. Revelou-se que 71% das mulheres brasileiras casadas ou unidas e que tiveram filhos, de 15 a 54 anos, usavam algum tipo de anticoncepcional. Ao passo que 44% delas estavam esterilizadas e 41% usavam pílula anticoncepcional. A maior incidência de mulheres esterilizadas era no Maranhão, estado que tinha a maior proporção de população negra.
Na época, era comum mulheres serem apresentadas à esterilização como um método contraceptivo reversível, ou como o único método disponível. Além disso, havia vagas de emprego que colocavam a laqueadura como um requisito para contratação. Vigoravam ainda movimentos de troca de votos por esterilizações em eleições.
Baseada em informações como essas, Jurema Werneck criou um projeto e buscou organizações para apoiá-la. Surgiu daí a Campanha Nacional contra a Esterilização de Mulheres Negras, feita em parceria com o Programa de Mulheres do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), cujo o slogan era “Esterilização – Do controle da natalidade ao genocídio do povo negro!”
A campanha denunciava que o governo brasileiro e entidades internacionais estavam financiando o controle da natalidade e o extermínio da população negra através das esterilizações involuntárias.“No desenvolvimento dessa campanha, tivemos acesso a documentos e informações sobre a existência deliberada de uma iniciativa de controle da natalidade”, conta Jurema Werneck.
Outras ativistas do feminismo negro se aliaram a esse debate. É o caso das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, localizado em São Paulo (SP), que lançaram em 1991 a publicação “Esterilização: Impunidade ou regulamentação?”, propondo a regulamentação da prática a fim de coibir os abusos e estimular o uso de outros métodos contraceptivos.
No artigo “Saúde Reprodutiva da População Negra no Brasil: Entre Malthus e Gobineau”, Edna Roland, psicologia e a época coordenadora do Programa de Saúde de Geledés, afirma que a posição defendida pelo programa destoava da fala de representantes do movimento negro que consideravam a prática unicamente um instrumento de genocídio.
“Recusando uma posição política que chegava ao cúmulo de declarações de militantes negros de que era tarefa política das mulheres negras terem filhos, o Programa de Saúde considerava que tal visão não incorporava a discussão do conceito de direitos reprodutivos, prendendo-se unicamente aos resultados demográficos das práticas contraceptivas, sem levar em conta as necessidades e desejos das mulheres em relação ao controle de sua prole”, escreve.
Jurema Werneck discordava da regulamentação. “Eu achava na época temeroso autorizar, porque estava sendo usada contra nós, sem controle e a lei não ia nos proteger”, diz. Naquele contexto, a laqueadura era uma prática que acontecia numa suposta ilegalidade, uma vez que era proibida pelo Código de Ética Médica e penalizada pelo Código Penal Brasileiro em situações de ofensa à integridade corporal.
Investimento internacional e controle demográfico
Diante desse contexto, foram criadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em estados como Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás para investigar as denúncias apresentadas pelo movimento de mulheres negras.Em paralelo, em março de 1991 o deputado Eduardo Jorge realizou uma debate acerca da questão na Câmara Federal, que resultou na primeira versão do Projeto de Lei nº 209/91, subscrito por ele, por Benedita da Silva e outros deputados para regulamentar a esterilização. Diante das críticas recebidas pelo projeto, Benedita da Silva e Eduardo Jorge apresentaram em 20 de novembro do mesmo ano um requerimento propondo uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para avaliar a questão à nível nacional.
A CPMI foi instalada em abril de 1992 e colheu 27 depoimentos de representantes de diferentes setores, incluindo do movimento de mulheres negras: Jurema Werneck, então representante do Ceap, Luiza Bairros, então coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), e Edna Roland, então diretora do Geledés.
A comissão apurou a incidência massiva de esterilização de mulheres no país, baseando-se em evidências, como a de que 45% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas, sendo que os maiores índices são em estados de maioria negra. “A maioria da população feminina que se submete a esta prática é negra, o que revela o caráter racista da esterilização”, dizia o sexto item do argumento. Outro ponto descrito foi o de que a esterilização é apresentada às mulheres como sendo o primeiro, principal ou único método contraceptivo.
Sobre a esterilização involuntária, a depoente Luiza Bairros destacou que havia uma maior evidência entre mulheres negras, decorrentes de doenças ginecológicas, que resultam da condição socioeconômica da pobreza e miséria.
Entre os fatos que escancararam o caráter racista da política reprodutiva da época está uma campanha publicitária realizada em 1986 na Bahia, conforme relata-se na CPMI. A campanha destinava-se à inauguração do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana e exibia outdoors com fotos de crianças e mulheres negras, com os dizeres “defeito de fabricação”.
O relatório apontou ainda que grande parte das laqueaduras ocorriam durante acesárea, o que “explica por que o Brasil ostenta a condição de campeão mundial nesse tipo de cirurgia”, diz o texto. Alerta-se também para os riscos da cesárea e para as sequelas da esterilização cirúrgica.
Constatou-se também a existência de interesse internacional na implementação do controle demográfico no país, incluindo o investimento de altas quantias com destaque para os Estados Unidos. As instituições ofereciam laqueaduras sob a omissão do Estado brasileiro, sendo as de maior envergadura a Bemfam e Cpaimc.
“Os municípios do Brasil tinham parceria de cooperação com a Bemfam, para distribuir métodos hormonais e os médicos encaminhavam para esterilização sem nenhum critério”, explica Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública, estudiosa e ativista dos direitos sexuais reprodutivos, com foco em mulheres negras.
Joice Nielsson, doutora em Direito Público e pesquisadora da área de Direitos Sexuais e Reprodutivos, explica que isso ocorreu quando vigorava no mundo a corrente desenvolvimentista, que colocava uma ideia de contraposição entre países de primeiro e terceiro mundo. “Havia a ideia de que a pobreza era culpa da procriação em massa das mulheres pobres do terceiro mundo. Uma ideia extremamente xenófoba e racista. E isso levou com que houvesse um investimento de várias instituições para um processo de esterilização em massa.”, diz.
Entre as conclusões obtidas pela CPMI estão:
- Não há no Brasil uma política de saúde da mulher por parte do Governo Federal;
- O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) não tem implementação efetiva;
- Há interesse internacional na implementação do controle demográfico no Brasil;
- Houve esterilização em massa de mulheres no país;
- É preocupante a taxa de arrependimento pós-laqueadura.
No entanto, o maior índice de esterilização de mulheres negras não foi confirmado pelo relatório. “A maior incidência de esterilização em mulheres da raça negra foi denunciada pelo movimento negro, como um aspecto do racismo praticado no Brasil. Os dados levantados pelo IBGE, na PNAD de 1986, não confirmam a denúncia, mas é fato notório a dificuldade de se apurar com precisão a informação relativa à cor da pele dos brasileiros”, pontua o texto.