O medo como rotina: o desafio de circular nas cidades sendo mulher

Deslocamento dos trabalhadores na volta para casa

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

16 de junho, 2025 Agência Senado Por Paloma Araújo

A insegurança condiciona a forma como as mulheres se deslocam nas cidades brasileiras. O medo — alimentado por casos constantes de assédio, perseguição e violência nas ruas — tem impacto direto sobre a mobilidade, fazendo com que muitas mulheres mudem suas rotinas e redefinam trajetos. “Nunca mais peguei ônibus”, relata Milena (nome fictício), vítima de assédio. “Se passa das 20h, não volto sozinha”, desabafa Bárbara. Karla Silva resume a sensação: “Você não se sente segura em nenhum lugar”.

No Brasil, a violência de gênero em espaços públicos é apontada como um dos principais entraves para que a população feminina possa se deslocar e usufruir plenamente dos espaços urbanos de forma segura. Dados de uma pesquisa nacional de 2024 revelam que 97% das mulheres têm medo de sofrer algum tipo de violência enquanto se locomovem, o que indica a nessidade de políticas públicas específicas de segurança.

Segundo o estudo Urbanismo sensível ao gênero: como oferecer cidades seguras para as mulheres, elaborado pela Consultoria Legislativa do Senado, as políticas de segurança, de planejamento urbano e de transportes não levam em conta as demandas desse público, e isso precisa mudar. Dados citados nesse estudo apontam que, no Brasil, uma mulher é vítima de assédio nas ruas a cada 1,5 segundo; a cada 6,9 segundos, uma mulher é vítima de perseguição; e, a cada 7,2 segundos, uma mulher sofre violência física.

Riscos nas ruas e nos transportes  

Seja no transporte público ou nas ruas mal iluminadas, a violência tolhe o direito de ir e vir das mulheres em seus trajetos cotidianos. Karla Silva, 21 anos, moradora de Teresina, aprendeu cedo que circular pelas ruas da cidade não seria simples. Desde os 12 anos fazia sozinha o trajeto entre a escola e a casa — e ainda hoje, já universitária, convive com o mesmo medo.

— Você não tem paz. O tempo todo está pensando em uma escapatória, para onde vai correr.

A insegurança, segundo ela, não se restringe às ruas. Está presente até nas escolhas de transporte.

— Nem no ônibus nem no Uber eu me sinto segura. O “Uber carro” eu não pego sozinha. Fico pensando: e se o motorista travar as portas e eu não conseguir sair? Só pego “Uber moto”, e ainda assim penso: se ele desviar o caminho, eu me jogo. É melhor me machucar do que sofrer um abuso. Porque é um trauma muito grande. Você não se sente segura em nenhum lugar.

Para Milena (nome fictício), 27 anos, que vive no Distrito Federal, um trauma marcou sua vida. Em 2017, ela foi vítima de assédio sexual dentro de um ônibus, quando voltava para casa após sair do local onde fazia estágio.

— Foi a pior sensação da minha vida. Depois disso, nunca mais peguei ônibus. Só de pensar, tenho crise de pânico.

Quando fica sem transporte próprio, ela prefere utilizar um transporte por aplicativo, embora ainda fique apreensiva e sempre compartilhe a sua localização em tempo real. E, quando pega o metrô, só usa o vagão feminino:

— Não tenho coragem de ir no vagão comum; me dá crise de pânico. Só de pensar em transporte lotado com homens, fico desesperada.

Segundo Milena, o episódio de assédio sexual comprometeu não só sua mobilidade, mas também sua saúde mental e suas relações pessoais.

— Isso é assunto na terapia até hoje. Mudou minha vida em questão de ansiedade e até em relacionamento. Sou uma pessoa que não gosta muito de toque.

Esse receio também atravessa a rotina de Bárbara Oliveira, 22 anos, que mora na cidade de São Paulo. Quando precisa voltar para casa à noite, ela evita caminhar da estação de metrô até a sua casa, e prefere pedir um carro por aplicativo.

— À noite os comércios fecham, não tem ninguém na rua e ainda há terrenos baldios. Inclusive tem um na esquina da minha casa. Tenho medo, sempre pode ter alguém escondido.

Bárbara conta que seus trajetos são sempre calculados, priorizando ruas iluminadas e com movimento. Ela acredita que medidas simples poderiam ajudar a aumentar a segurança, como a melhoria da iluminação e a oferta de mais vagões exclusivos para mulheres nos horários de pico.

Dados e pesquisas

Os dados reforçam a percepção das mulheres: uma pesquisa do Ibope Inteligência de 2019, realizada na cidade de São Paulo, revelou que 63% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio em espaços públicos e que 46% delas se sentem mais ameaçadas no transporte coletivo.

O Instituto Patrícia Galvão, que desenvolve pesquisas e campanhas voltadas à promoção dos direitos das mulheres, tem se dedicado nos últimos anos a estudar como o medo da violência afeta a mobilidade feminina nas cidades brasileiras. No ano passado, esse instituto realizou uma pesquisa em parceria com o Instituto Locomotiva e com apoio da Uber; o levantamento mostrou que 17% das brasileiras já sofreram assédio ou importunação sexual na rua ou dentro do transporte público — índice que sobe para 30% em São Paulo.

De acordo com essa pesquisa, 9 em cada 10 mulheres sabem que a importunação é crime, mas apenas 3 em cada 10 vítimas procuraram a polícia para fazer a denúncia. O levantamento também indicou que 74% das mulheres já enfrentaram alguma forma de violência enquanto se deslocavam pela cidade onde vivem.

— É inaceitável que, diariamente, tantas mulheres ainda sejam vítimas de importunação sexual na rua, no ponto de ônibus, nas estações ou dentro do transporte público. Por isso, é preciso garantir a aplicação das leis e desenvolver políticas e mecanismos eficazes para a prevenção contra a violência e para assegurar o direito das mulheres de ir e vir sem medo — afirma Marisa Sanematsu, diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão.

Questões sociais e raciais agravam ainda mais a vulnerabilidade das mulheres nos deslocamentos urbanos. De acordo com a pesquisa dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, 30% das mulheres negras têm o ônibus como principal meio de transporte, número que sobe para 36% entre mulheres de baixa renda.

O estudo também mostra que 34% das mulheres que são negras e de baixa renda se deslocam principalmente a pé, o que as expõe ainda mais à insegurança nos trajetos diários.

— São mulheres que, em sua maioria, vivem em regiões periféricas, percorrem distâncias maiores e dependem fortemente do transporte público ou de caminhadas. Isso as torna mais vulneráveis a diferentes formas de violência e insegurança ao longo do percurso — explica Maíra Saruê, diretora de pesquisa do Instituto Locomotiva.

As demandas das mulheres são claras: mais iluminação pública, maior presença policial, treinamento para trabalhadores do transporte coletivo e campanhas educativas.

Para Carolina Baima Cavalcanti, consultora legislativa do Senado que é especialista em desenvolvimento urbano, enfrentar essa realidade exige políticas públicas que incluam a perspectiva das mulheres — inclusive na concepção dos projetos urbanos.

— O transporte, o planejamento urbano e a segurança precisam ser pensados levando em conta que as mulheres se deslocam de forma diferente dos homens. Elas têm trajetos mais curtos e fragmentados, e precisam de mais segurança nos deslocamentos a pé e no transporte coletivo.

Carolina foi a responsável, junto com Mila Landin Dumaresq (também consultora legislativa do Senado), pelo estudo Urbanismo sensível ao gênero: como oferecer cidades seguras para as mulheres.

Além da inclusão da perspectiva feminina nas políticas públicas, ela defende a implementação de soluções integradas.

— Segurança urbana para mulheres exige uma abordagem sistêmica, que envolve desde iluminação pública e segurança no transporte até campanhas de conscientização e articulação entre órgãos públicos. Só assim será possível transformar o medo em liberdade — argumenta.

Essa perspectiva está alinhada às diretrizes da ONU Mulheres, que incentivam políticas urbanas inclusivas e sensíveis ao gênero como condição para o direito à cidade. A ONU Mulheres enfatiza que os espaços urbanos devem ser planejados considerando as diferentes experiências e necessidades, principalmente no que se refere à mobilidade e à segurança durante os deslocamentos diários.

De acordo com o relatório Safe Cities and Safe Public Spaces for Women and Girls (Cidades Seguras e Espaços Públicos Seguros para Mulheres e Meninas), publicado pela ONU Mulheres em 2019, iniciativas em várias partes do mundo vêm dando prioridade à segurança urbana com um olhar de gênero.

Tais iniciativas incluem melhorias na mobilidade urbana, maior iluminação pública, vigilância adequada e envolvimento ativo das mulheres no processo de planejamento.

Projetos no Senado

A segurança das mulheres é o tema de alguns projetos de lei que tramitam no Senado. Um deles é o PL 719/2025, que garante a passageiras desacompanhadas o direito de escolher assentos próximos a outras mulheres em viagens interestaduais ou internacionais, sem custo adicional. A intenção da medida é evitar situações de assédio ou importunação sexual.

A autora da proposta é a senadora Daniella Ribeiro (PP–PB).

— A segurança das mulheres nos transportes coletivos é um direito, não é um privilégio. Esse projeto de lei propõe apenas uma medida simples, mas essencial, que vai proporcionar muito mais tranquilidade durante os deslocamentos — enfatiza a senadora.

Já o PL 643/2025 é um projeto de lei que garante às passageiras de transporte por aplicativo o direito de escolher motoristas mulheres, sem cobrança adicional. Além da questão da segurança, a medida poderia incentivar a atuação das mulheres como motoristas no setor.

O senador Rogério Carvalho (PT–SE) é o autor dessa proposta, que altera a Política Nacional de Mobilidade Urbana.

— Ao permitir que elas possam selecionar motoristas mulheres, reconhecemos as vulnerabilidades específicas enfrentadas por passageiras no contexto da mobilidade urbana, oferecendo-lhes uma alternativa concreta para viagens com maior sensação de segurança — declarou o senador, acrescentando que “as mulheres que são motoristas de aplicativo também devem ter o direito de aceitar ou não um passageiro homem”.

O Senado possui uma estrutura para a promoção da igualdade de gênero e o enfrentamento da violência contra a mulher: a Procuradoria Especial da Mulher. Atualmente, quem está à frente desse órgão é senadora Zenaide Maia (PSD–RN).

Ela salienta que, “sem colocar as políticas públicas de defesa da vida da mulher dentro do Orçamento público, não adianta aprovar leis, porque estaremos enxugando gelo”.

Zenaide é autora do PL 2.325/2021, projeto de lei que proíbe o uso da “legítima defesa da honra” como argumento para a absolvição dos acusados de feminicídio. Sua proposta também prevê o fim de atenuantes relacionados à “forte emoção” em crimes contra mulheres.

Cerca de dois anos após a apresentação desse projeto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional.

Mudanças estruturais  

De acordo com o estudo da Consultoria Legislativa do Senado, os serviços públicos e o planejamento urbano ignoram questões de gênero e refletem desigualdades estruturais do país — o que gera situações de insegurança que afetam principalmente mulheres e meninas. Por isso, as autoras da pesquisa argumentam que, além de medidas pontuais, são necessárias mudanças estruturais e integradas.

Carolina Baima Cavalcanti afirma que, para que ocorram tais mudanças, é preciso reconhecer a desigualdade de gênero como um fator central na forma como as cidades são ocupadas e vividas. E, a partir disso, repensar o planejamento urbano — e o sistema de transporte público — considerando as necessidades da população feminina (como os múltiplos deslocamentos diários e a mobilidade ligada ao cuidado).

— Não basta pensar em segurança apenas como iluminação ou [presença de] câmeras. É preciso construir um ambiente urbano que promova a presença constante das pessoas, criando o que chamamos de “olhar da vizinhança”, que é um dos melhores instrumentos de prevenção contra a violência.

Em seu estudo, as duas consultoras recomendam iniciativas legislativas para reduzir a insegurança urbana. Uma delas é o mapeamento detalhado dos ambientes urbanos para identificar os principais locais e fatores que causam insegurança para as mulheres. Outra sugestão é a instalação de pontos de embarque e desembarque de passageiros especialmente adaptados para proporcionar mais segurança às usuárias.

Carolina enfatiza que “uma cidade segura para as mulheres é, também, uma cidade mais segura para todos”. E acrescenta que o desafio agora é transformar essa pauta em prioridade legislativa e política.

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