O “cistema” precisa ir além do burocrático e do “protocolês” para entender uma vivência trans
Desde a primeira vez que, ainda no início da adolescência, compararam negativamente minha voz com a de uma travesti, sabia que meu caminho seria desafiador.
Antes desse entendimento ficar explícito para mim, eu já acompanhava a pauta pelas redes sociais e compreendia que várias coisas mudariam na minha vida. Pessoas deixariam de fazer parte do meu círculo, a insegurança seria uma preocupação constante e existir nesse sistema transfóbico seria um ato de resistência, mas eu também sabia que sentiria um pertencimento nunca experimentado antes.
Depois de muito pesquisar e consumir relatos de outras pessoas trans – compreender prós, contras, riscos e belezas -, decidi, em 2021, aos 22 anos, começar meu processo de transição hormonal (porque a transição acontece mesmo sem hormônio novo no corpo). Descobri que alguns passos eram necessários para ter acesso ao acompanhamento no Sistema Único de Saúde (SUS), e a primeira parada era ter em mãos o laudo de uma psicóloga com a liberação para a transição hormonal.
A busca pelo laudo
Na época, eu mantinha uma consulta irregular — por conta do valor cobrado — com uma profissional que, apesar de não tratar do assunto diretamente, cuidou da minha ansiedade por mais de um ano e conhecia as angústias sobre meu gênero. Para mim, o caminho com ela seria menos invasivo e desgastante.
Assim que a encontrei pessoalmente e fiz o pedido, ela negou, pois não achava que usar hormônios era o caminho. A psicóloga me incentivou a voltar atrás e esperar ainda mais, argumentando que eu poderia estar em “uma fase” de dúvidas. Foi um momento difícil! Se uma pessoa que conhecia segredos, dúvidas e certezas quase secretas minhas não considerava a possibilidade de “validar” minha identidade de gênero, quem iria?
Então, procurei o Ambulatório Professor Francisco Magalhães Neto, que fica no Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aqui em Salvador. Eles viriam a ser os responsáveis por me entregar os medicamentos e por acompanhar meu caminhar nesse processo, que segue até hoje. Ao chegar lá, passei por uma espécie de triagem com uma enfermeira, que em seguida me indicou uma psicóloga no Centro Municipal de Referência LGBT+ Vida Bruno.
Apesar de funcionar, o sistema de saúde falha em ser inclusivo
O processo de triagem e as sessões com a psicóloga para obter o laudo deixaram evidente pra mim o quanto tudo ainda está preso a uma lógica preconceituosa, binária e machista. As perguntas pareciam parte de um teste com respostas certas e erradas, como se existisse apenas um jeito legítimo de ser mulher.
Fui questionada repetidamente se sempre me senti atraída por homens; se, na infância, preferia brincar com bonecas ou com bola; se me identificava mais com os homens ou com as mulheres da minha família. Perguntaram até a posição sexual que eu costumava assumir, a minha cor favorita e a quantidade de amigas que eu tinha. Tudo isso reforçava uma visão limitada e cisnormativa do que é ser mulher.
Tudo me parecia partir de uma perspectiva cis e hétero. Como se, para o sistema, não seja possível existir uma feminilidade que fuja daquele padrão esperada para uma mulher, seja ela cis ou trans. Tantas perguntas me soavam como uma tentativa de procurar uma inconsistência para então questionarem: “você não queria ser mulher? Por que não age como uma?”
Mesmo me encaixando nas expectativas sociais que esperavam para corpos femininos, o medo e a preocupação não deixaram de me encarar, principalmente quando pensava em outras pessoas que provavelmente se anularam para passar nesse “teste”. Por isso, eu sempre questionava qual a necessidade de perguntas que não influenciavam na identidade de gênero, e sempre me respondiam com variações de: “não tenho culpa, é o protocolo.”
As dificuldades foram maiores do que eu pensava
De tudo que imaginei que passaria e passei: missgender (quando trocam o gênero de uma pessoa trans), demora para alcançar a hormonização, agressões físicas, ameaças e olhares tortos; a ideia da retificação de nome sempre me pareceu o processo menos demorado. Campanhas de mutirão são veiculadas constantemente, e as histórias de pessoas que conseguem essa mudança em um curtíssimo período me davam uma esperança gigantesca. Mas não foi bem assim.
Ao todo, foram dois mutirões, mais de dez visitas para cobrar um retorno, um ano e três meses de espera até que minha certidão de nascimento fosse retificada corretamente. Nesse período, redigiram a abertura do processo de forma errada, indicaram que eu o assinasse com meu nome social — que ainda não era reconhecido pelo Estado —, e o juiz responsável ainda escreveu meu nome com erro de grafia, o que atrasou ainda mais o trâmite. Foram muitos descuidos, resultado de um sistema formado majoritariamente por pessoas cisgênero despreparadas e completamente alheias à realidade da população trans.