Carta-resposta: Meninas e adolescentes não devem ser mães e nem sofrer violências, o caminho é pela integridade corporal, por Dandara de Oliveira Ramos, Andrêa Ferreira, Emanuelle Góes, Ana Maria Miguez Silva e Jamile Mendes

04 de julho, 2025 Associação de Pesquisa Iyaleta Por Dandara de Oliveira Ramos, Andrêa Ferreira, Emanuelle Góes, Ana Maria Miguez Silva e Jamile Mendes

Esse texto é uma resposta à Consulta Pública nº 37/2025 da Conitec/SECTICS sobre o uso do implante subdérmico de etonogestrel (Implanon®) para prevenção da gravidez em adolescentes de 14 a 17 anos. Destacam-se preocupações éticas, legais e de saúde pública relacionadas à oferta desse método para essa faixa etária. Ao longo deste documento é reforçado que os direitos sexuais e reprodutivos garantem a autonomia corporal das adolescentes. Apontam-se também riscos clínicos como alterações hormonais, efeitos colaterais e elevado índice de descontinuação. Também enfatiza-se a necessidade de políticas de enfrentamento à violência sexual, visto o alto número de casos entre adolescentes. Esta carta-resposta analisa e critica a adoção de soluções biomédicas isoladas para problemas estruturais e defende que a oferta de contraceptivos seja sempre acompanhada de proteção social, educação sexual, preservação da saúde na sua integralidade e garantia de consentimento livre e informado.

Direitos humanos, direitos sexuais e reprodutivos e a integridade corporal

Meninas e adolescentes têm sua integridade corporal preservados pelos direitos sexuais e reprodutivos, pois é sob a égide dos direitos humanos que o estado brasileiro assiste à saúde sexual e reprodutiva integrais. “Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos que garantem a autonomia e o respeito pela sexualidade e pela reprodução. Eles incluem o direito à informação, educação e serviços de saúde relacionados à sexualidade, além da garantia de escolhas reprodutivas livres e informadas” (BRASIL, 2009, pag.6).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1992), em que o Brasil é signatário, traz o Direito à Integridade Pessoal, garantindo que ninguém pode ser agredido, torturado ou submetido a tratamentos que violem sua dignidade física e mental, preservando a integridade corporal. O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura aos adolescentes (12 a 18 anos) o direito de tomar decisão sobre o próprio corpo e saúde sexual, assim como o direito à educação sexual e acesso à informação sobre métodos contraceptivos. Porém, a prescrição de métodos deve ser respeitando o critério médico de elegibilidade (BRASIL, 1990). Para adolescentes é sempre indicado a prevenção combinada, com uso de método contraceptivo associado ao uso de preservativos (MORAES E VITALLE, 2012; BRASIL, 1990).

Em que pese métodos contraceptivos hormonais não sejam contraindicados para adolescentes, é importante destacar que a primeira e principal oferta deveria ser o preservativo que garante a combinação do sexo protegido e de uma gravidez não pretendida, caso contrário, recomenda-se escolha de outros métodos que no critério de elegibilidade

cause menos danos, neste caso, para os hormonais devem ser considerados aqueles que causem menor impacto na saúde e na integridade física/corporal das adolescentes. A utilização de métodos hormonais requer um acesso de forma periódica e integral de adolescentes aos serviços de saúde para acompanhamento de sinais e sintomas e gerenciamento de efeitos colaterais, considerando os fatores de risco associados ao seu uso como hipertensão, doenças cardiovasculares, tromboembolismo e para aquelas com histórico de câncer na família (CARDOSO, 2019; FEBRASGO, 2017). O uso por um longo tempo pode gerar danos futuros à saúde das adolescentes na idade adulta considerando os fatores de risco elencados.

Contexto das evidências científicas

Em particular, em relação aos métodos de longa duração (LARCs – Long-Acting Reversible Contraceptives), como o Implanon® é importante destacar que, conforme a bula, é indicado exclusivamente para mulheres adultas, com estudos clínicos conduzidos majoritariamente em mulheres com idade entre 18 e 40 anos, apresentando evidências limitadas quanto à sua utilização em adolescentes (ORGANON, 2023). Embora a bula não contraindique expressamente seu uso nessa faixa etária, ela explicitamente reconhece na seção 5.1 que “os dados de segurança em adolescentes (12-18 anos) são limitados”. Esta constatação é agravada pelo fato de que os estudos clínicos citados incluíram apenas 5% de participantes entre 16 e 18 anos (seção 5.1 da bula), uma amostra claramente insuficiente para conclusões robustas.

A sua prescrição para adolescentes, portanto, levanta preocupações éticas, legais e, sobretudo, de saúde a curto e médio prazo. Estudos internacionais têm apontado índices expressivos de descontinuação do método, principalmente devido à ocorrência de efeitos colaterais relevantes (Nageso & Gebretsadik, 2018; Beyene et al., 2022; Obsu et al., 2022; Tadesse et al., 2017). Em adolescentes, tais efeitos podem ser ainda mais prejudiciais, uma vez que incidem sobre corpos em processo de desenvolvimento, com potencial para comprometer a saúde física, emocional e reprodutiva dessas adolescentes.

Estudos farmacológicos identificaram três mecanismos fisiológicos críticos que diferenciam o metabolismo do etonogestrel em adolescentes. Primeiramente, o clearance hepático apresenta-se 20-30% mais elevado nesta população comparado às pessoas adultas (BELTRAN et al., 2022), o que pode comprometer a eficácia contraceptiva em alguns casos. Em segundo lugar, a composição corporal típica da adolescência, caracterizada por maior porcentagem de tecido adiposo, altera significativamente a liberação do hormônio, resultando em picos plasmáticos 15% mais elevados nas primeiras 12 semanas de uso (KOHN et al., 2023). Por fim, a imaturidade do eixo hipotálamo-hipofisário torna-o particularmente sensível à supressão, com níveis de FSH 40% mais baixos que em pessoas adultas após seis meses de uso contínuo (OMS, 2023).

Aliado a isso, a avaliação crítica da literatura disponível e utilizada no relatório, revela que as evidências que sustentam o uso do Implanon® em adolescentes são classificadas como Nível C segundo o sistema GRADE da Cochrane (SCHOENFELD et al., 2021). Esta classificação de evidência reflete uma base científica frágil, fundamentada principalmente em extrapolações de dados obtidos em população adulta, opiniões de especialistas e na ausência de estudos longitudinais ou ensaios clínicos randomizados que avaliem adequadamente os parâmetros farmacocinéticos e os efeitos a curto, médio e longo prazo especificamente em adolescentes. Esta lacuna no conhecimento científico resulta em um risco de viés classificado como moderado a alto nas decisões clínicas da medicina baseada em evidência (COCHRANE, 2022), com potenciais implicações negativas para a saúde e o desenvolvimento adequado de adolescentes.

De acordo com a Análise de Lacunas de Insumos Contraceptivos (CGA) da Coalizão de Insumos para Saúde Reprodutiva (RHSC), em 2018, 139,2 milhões de mulheres usavam LARCs, aproximadamente 30% de todas as usuárias de contraceptivos. Os LARCs representam uma proporção crescente do mercado de contraceptivos do setor público, constituindo 64% em 2016 e aumentando para 70% em 2020 (excluindo injetáveis). Em 2012, o Population Council, a International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO) e a Reproductive Health Supplies Coalition (RHSC) formaram um Bellagio Group que argumentou que mais de 57 milhões de mulheres utilizariam LARCs até 2020, e defendeu que o aumento do acesso a esses métodos era fundamental para alcançar o acesso universal à saúde reprodutiva (COUNCIL POPULATION, 2012). Essas iniciativas motivaram vários esforços para expansão do acesso aos LARCs, como doadores internacionais, ampliando a participação no mercado de implantes por meio de garantias de volume e investimentos no desenvolvimento e distribuição desse novo método contraceptivo (BOYDELL, 2023).

No que se refere à movimentação financeira associada ao uso dos LARCs, os dados mais recentes reforçam sua relevância econômica dentro do setor de saúde reprodutiva. Segundo o relatório 2019 Commodity Gap Analysis da RHSC, o consumo total de suprimentos contraceptivos em países de baixa e média renda atingiu, em 2018, o montante de US$ 3,45 bilhões. Dentro desse cenário, tanto os DIUs quanto os implantes responderam, individualmente, por 3% dos custos totais, resultando em uma participação conjunta de aproximadamente 6% dos gastos com contraceptivos. Isso equivale a cerca de US$ 207 milhões anuais destinados especificamente a esses dois métodos de longa duração (RHSC, 2019). Esses números indicam não apenas o crescimento da demanda por LARCs, mas também a consolidação de um segmento que mobiliza investimentos substanciais e que está cada vez mais integrado às estratégias de saúde pública reprodutiva nos países de menor renda.

De acordo, com Countdown 2030 Europe, em países de baixa e média renda, o financiamento de suprimentos contraceptivos (incluindo LARCs) vem de três fontes principais: doadores (10%), governos nacionais (8%) e gastos do próprio bolso por indivíduos no setor privado (82%).

Gravidez e maternidade na adolescência – desigualdades, violências e coerção reprodutiva

Ademais, após leitura atenta do Relatório Técnico e do Relatório para a sociedade, destacamos alguns aspectos centrais acerca da gravidez e maternidade na adolescência que não foram contemplados ou devidamente considerados nos referidos documentos.

A gravidez e a maternidade na adolescência são questões relacionadas aos direitos humanos, aos direitos sexuais e reprodutivos e à saúde pública. Mulheres e meninas têm assegurado no âmbito dos marcos internacionais os direitos sexuais e reprodutivos que tratam sobre escolhas, autonomias, tomadas de decisão e acesso a serviços. Porém, em sociedades com desigualdades estruturais fortemente marcadas, mulheres e meninas vivenciam as desigualdades de gênero, mas em trajetórias heterogêneas quando consideramos as dimensões interseccionais que atravessam suas trajetórias reprodutivas, como raça, classe e geração (Goes et al. 2023, UNFPA, 2023). Essas desigualdades conformam a gravidez e a maternidade na adolescência e marcam as experiências de mulheres e meninas de maneiras muito distintas. São vários os fatores que mediam o exercício pleno do direito e da saúde sexual e reprodutiva, que por consequência geram barreiras no acesso aos serviços de saúde (Goes & Nascimento, 2010). Para as adolescentes, em especial, estas experiências são acompanhadas pelos primeiros impactos das estruturas de desigualdades raciais, de gênero e de classe nas relações afetivas sexuais, nas escolhas sexuais e reprodutivas, nas autonomias e no acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva (Goes & Nascimento, 2010).

É fundamental destacar que a violência sexual tem uma forte relação com a gravidez e maternidade na adolescência. Dado este que não foi devidamente considerado nos relatórios que compõem a consulta pública (ex.: em busca nos documentos encontra-se somente uma ocorrência do termo ‘violência’, estando este referido a violência por ausência de autonomia). Um estudo da OMS divulgado em julho de 2024 revela que 24 % das meninas de 15 a 19 anos que têm relacionamentos íntimos sofrem violência física ou sexual até os 20 anos—isso representa cerca de 19 milhões de vítimas globalmente (OMS, 2024). Em análise dos dados mais recentes do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN-Violência) de 2023, são contabilizados 33.391 casos de violência sexual contra adolescentes (idade <19 anos) no país, correspondendo a 64,4% do total de casos. A análise do Sistema de Informações de Nascidos Vivos também torna visível o dado de aproximadamente 14% das parturientes com idade inferior a 16 anos reportando estado civil indicativo de casamento ou união estável, o que contradiz o preconizado pela Lei nº

13.811/2019, que estabelece a proibição do casamento de menores de 16 anos em qualquer hipótese. Analisados em conjunto, estes dados contextualizam que a realidade do fenômeno da gravidez e maternidade adolescentes é de grande complexidade, e que há sérios riscos na oferta ampliada de contracepção desassociada de um compromisso central e explícito com o enfrentamento da violência sexual contra meninas e adolescentes.

Sem políticas de enfrentamento à violência sexual, a disponibilização de LARCs pode ser interpretada — ou utilizada — como uma forma de controle reprodutivo, não de proteção. Isso pode levar à normalização de abusos, especialmente em contextos em que meninas são expostas à violência sistemática, como casamentos forçados, exploração sexual, ou abuso intrafamiliar. Meninas e adolescentes têm direito à informação clara, ao consentimento livre e esclarecido, e à proteção. Em contextos sem políticas de proteção, elas podem ser coagidas — por familiares, instituições ou profissionais de saúde — a usar LARCs, sem entenderem suas implicações ou sem os desejar de fato. Oferecer apenas o método contraceptivo, sem enfrentar o ciclo de violência, mostra uma falha grave do Estado em cumprir seu papel de proteger meninas e adolescentes. É uma solução biomédica a um problema estrutural, social e jurídico.

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