Criada há 19 anos, Lei Maria da Penha resiste, mas muitas de nós não, por Claudia Guadagnin

08 de agosto, 2025 Portal Catarinas Por Claudia Guadagnin

Duas décadas depois da criação da Lei Maria da Penha, ela continua sendo um marco legal de resistência. Mas o Brasil que a sancionou ainda se mostra incapaz de garantir o direito mais básico a milhares de mulheres: o de permanecer vivas.

A Maria da Penha resiste. Mas muitas de nós não. Quase duas décadas após a promulgação da Lei que carrega seu nome, a violência doméstica no Brasil continua sendo uma tragédia anunciada e, ainda assim, muitas vezes, ignorada.

A legislação existe, é potente e necessária. Mas esbarra, todos os dias, em uma cultura machista que relativiza a dor das mulheres, impede denúncias e sabota a proteção. Para milhares de vítimas, a Lei não chega a tempo. Não atravessa a porta trancada, nem o medo instalado. Falha, não por ausência de norma, mas pelo predomínio de uma cultura patriarcal de dominação, que ainda se faz presente em nossa sociedade.

Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica brasileira que sobreviveu a tentativas de feminicídio cometidas pelo então marido, na década de 1980. Após anos de impunidade no Brasil, sua denúncia chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e levou o Estado brasileiro a ser condenado por omissão. A partir daí, em 2006, a legislação foi criada como um esforço de reparação e enfrentamento à violência contra as mulheres no país.

A Lei Maria da Penha foi, e continua sendo, um divisor de águas: uma das legislações mais emblemáticas no combate à violência de gênero na América Latina. Ela transformou o que antes era tratado como “problema conjugal” em uma grave violação de Direitos Humanos.

A brutal agressão cometida no dia 26 de julho deste ano por Igor Eduardo Pereira Cabral, de 29 anos, contra a então namorada em um elevador de Natal, no Rio Grande do Norte, não é um caso isolado. É reflexo de uma cultura que ainda permite que mulheres sejam espancadas.

Violência em números: a dor estatística

A pergunta que precisamos fazer, com dor e urgência, é: por que tantas mulheres ainda continuam morrendo?

Os números denunciam com brutal clareza. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.492 mulheres foram assassinadas por serem mulheres em 2024, o que representa a média de quatro mortes por dia. Enquanto os homicídios no país caíram no ano que passou, os feminicídios aumentaram. Ser mulher no Brasil ainda é fator de alto risco.

Além disso, a cada seis minutos, uma mulher foi estuprada no país. Foram mais de 87 mil registros em 2024 e as tentativas de feminicídio cresceram 19%. A maioria dos crimes ocorre dentro de casa, cometidos por maridos, namorados ou ex-companheiros. Muitas das vítimas buscaram ajuda, mas não foram protegidas a tempo.

Sim, a Lei Maria da Penha já salvou milhares. Ela criou instrumentos como medidas protetivas, juizados e patrulhas policiais especializadas, casas-abrigo e canais de denúncia. No entanto, em centenas de municípios brasileiros, especialmente nos mais distantes dos grandes centros urbanos, ainda não há delegacias especializadas, nem apoio psicológico gratuito ou estrutura pública mínima para o acolhimento das vítimas.

Redes que acolhem: o poder da solidariedade feminina

Onde o Estado falha, as mulheres constroem redes. Não por heroísmo, mas por questão de sobrevivência. O projeto Nós Seguras é uma dessas redes. Criado por um coletivo de advogadas, ele atua como ponte entre mulheres em situação de violência e os serviços públicos de proteção. Escuta, acolhe, orienta, articula. Com base em metodologias de cuidado coletivo e atenção psicossocial, o projeto transforma vulnerabilidade em vínculo.

Nas redes sociais, promove campanhas, encontros, ações educativas e, principalmente, atendimento gratuito às mulheres em um momento de tanta fragilidade e necessidade. De outubro de 2020, quando foi criado, até agora, já atendeu e ajudou mais de 1.800 mulheres em todos os estados brasileiros, bem como brasileiras residentes fora do país.

Outro exemplo é o Projeto Bastê. Criado por Thaís Santesi, terapeuta integrativa e orientadora holística especializada em relações abusivas, a iniciativa concede às mulheres o direito de compreender a linguagem da Justiça e as ensina como reconhecer relações abusivas, solicitar medidas protetivas, acessar direitos e navegar pelos labirintos legais. O Bastê não apenas informa: ele, antes de tudo, acolhe, valida e empodera. Thaís também é autora dos livros Recaídas – como sair do ciclo e recomeçar a vida e O Guia da Liberdade – Guia Completo Sobre Relacionamentos Abusivos. As obras podem ser adquiridas para leitura nas versões em e-books e físicas.

Os exemplos do Nós Seguras e do Projeto Bastê revelam algo essencial: a solidariedade e o acolhimento entre mulheres, em momentos de dor e dificuldade, continuam sendo o elo mais confiável dessa cadeia de proteção. De toda a forma, ainda que essas redes de apoio sejam extremamente valiosas, necessárias e eficazes, não podemos romantizar o fato de que muitas vítimas contam exclusivamente com elas. E por mais nobres e qualificadas que sejam, essas iniciativas seguem sendo sustentadas pelo esforço de profissionais voluntárias. Então, é fundamental que o Estado e as empresas privadas reconheçam esse trabalho.

Retrocesso institucional e suas consequências

Durante o governo Jair Bolsonaro (2019–2022), as políticas de proteção às mulheres sofreram um desmonte sistemático. Em 2019, o orçamento autorizado para ações de enfrentamento à violência de gênero era de R$ 76,6 milhões, mas a execução efetiva foi limitada.

Em 2020, embora o valor autorizado tenha saltado para R$ 141 milhões, menos de 30% foi de fato executado. Em 2022, o montante autorizado caiu para R$ 43,8 milhões, com uma execução ainda mais restrita — o menor patamar da década. Programas como o “Mulher, Viver sem Violência” foram praticamente paralisados, o Ligue 180 perdeu mais de 40% dos recursos, e a Rede de Casas da Mulher Brasileira foi deixada sem investimentos. O discurso oficial priorizou uma pauta moralizante, enquanto a realidade das vítimas foi ignorada. O Estado se ausentou. E o custo dessa ausência foi medido em mortes.

A partir de 2023, o governo Lula iniciou um movimento de reconstrução. Recriou o Ministério das Mulheres com orçamento ampliado, reativou programas abandonados e lançou o Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios e a campanha “Brasil sem Misoginia”. Ampliou as Casas da Mulher Brasileira, reestruturou o Ligue 180 e fortaleceu a legislação, tornando o feminicídio um crime autônomo com pena aumentada. Também determinou a atuação coordenada entre União, estados e municípios no combate à violência de gênero.

São passos importantes, mas que ainda precisam alcançar quem está à margem, onde sobreviver continua sendo um ato de resistência diária.

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