No casamento, a intimidade costuma ser vista como parte natural da convivência. Mas, para muitas mulheres, esse espaço de afeto pode se transformar em cenário de violência sexual. O estupro marital, quando há relação sem consentimento dentro de uma união, é crime previsto em lei. Reconhecer os sinais e entender como ele se configura é o primeiro passo para romper o ciclo de violência.
Estupro marital: o que é?
O Código Penal brasileiro define estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à conjunção carnal ou à prática de outro ato libidinoso”.
A legislação não faz distinção sobre o vínculo entre autor e vítima. Pode ser casamento, união estável ou qualquer outra relação: o que caracteriza o crime é a ausência de consentimento. “Esse consentimento precisa ser claro, racional e livre”, explica Ariadne Dantas, coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher do Ministério Público de Alagoas.
Segundo Ariadne, se a mulher é forçada a manter relações sexuais contra a vontade, mesmo dentro de uma relação estável, há estupro. “Muitas vezes, ela não tem liberdade para consentir porque sofre intimidação, ameaças ou outras formas de violência. Nesses casos, o companheiro está cometendo, sim, o crime de estupro”, afirma.
Racismo e machismo
O Ministério Público atua não apenas na esfera criminal, oferecendo denúncias e acompanhando o processo penal, mas também na esfera protetiva.
“Podemos ajuizar ações para afastamento do agressor, proteção de guarda, partilha de bens e outros encaminhamentos. Também fiscalizamos se a rede de proteção está funcionando e se há acolhimento psicológico, social e de saúde para que a mulher consiga sair do ciclo de dependência”, explica Ariadne.
Entre 2011 e 2022, o Brasil registrou 350 mil casos de violência sexual contra mulheres, segundo dados do Sinan reunidos no Mapa Nacional da Violência de Gênero. Em um de cada oito casos, o agressor era o próprio cônjuge ou namorado. O recorte racial é evidente: 66% das vítimas eram mulheres negras.
Para Ariadne, essas estatísticas revelam um cenário de maior vulnerabilidade para mulheres negras e em situação de pobreza. “O racismo e o machismo estruturais colocam essas mulheres em posições de maior exposição. Quando não enxergamos essa violência, impedimos que ela seja tratada como deve”, alerta.
Sinais emocionais e psicológicos do estupro marital
Para muitas mulheres, a percepção da violência começa pelos efeitos emocionais, antes mesmo do reconhecimento racional do que viveram. A psicóloga Nicolly Amorim, especialista no atendimento a mulheres, explica que esses sinais costumam surgir de forma silenciosa, mas profunda.
“Essas mulheres chegam ao consultório com sintomas intensos de sofrimento, mas sem nomear o que passaram como estupro. Entre os sinais mais comuns estão baixa autoestima, medo do parceiro, sensação de repulsa, ansiedade antes ou após relações sexuais, insônia, pesadelos, dores sem causa médica, submissão exagerada e sensação de vazio durante o sexo.”
Nicolly também aponta o surgimento de transtornos como depressão, distúrbios alimentares e dissociação, quando a mulher “desliga” emocionalmente durante o ato sexual ou em momentos de intimidade. “Essa dissociação pode persistir mesmo em novos relacionamentos.”
A culpa como ferramenta de controle
Para Nicolly Amorim, a ideia de que o sexo é um dever da esposa no casamento ainda silencia muitas mulheres. Ela explica que essa visão é fruto de uma herança patriarcal, presente inclusive em discursos religiosos, que pregam que “uma boa esposa deve servir ao marido mesmo sem vontade”. Essa pressão, diz a psicóloga, gera culpa e a culpa mantém a mulher no ciclo da violência.
Uma das frases mais comuns que a psicóloga ouve em consultório é: “Será que isso é coisa da minha cabeça?”.
“Se você tem essa dúvida, valide o que está sentindo. A manipulação masculina muitas vezes serve justamente para desacreditar a percepção da mulher e facilitar a violência.”
Nesse contexto, ter uma rede de apoio é essencial. “A mulher precisa ter com quem contar. Familiares e amigas devem escutar sem julgar e evitar frases como ‘homem é assim mesmo’ ou ‘ele vai mudar’. Isso só aumenta a culpa. Frases como ‘eu percebo que você está passando por algo difícil, estou aqui para o que precisar’ são muito mais eficazes.”
Quando não há marcas, mas há violência
A ausência de lesões físicas não significa que não houve crime, lembra a advogada criminalista Mayara Heloise Cavalcanti. O Código Penal prevê “violência ou grave ameaça” — e essa ameaça pode ser psicológica, como insistência, chantagem, pressão excessiva, ameaças de abandono ou de causar danos aos filhos. “Se a mulher diz ‘não’, chora, fica imóvel ou demonstra desconforto, e o parceiro continua, é estupro. O consentimento é atual, específico e pode ser retirado a qualquer momento”, reforça.
Ela lembra que atos praticados com a mulher inconsciente, dormindo ou sob efeito de álcool ou medicamentos também são crime, conforme o artigo 217-A do Código Penal.