Quem são e onde estão as brasileiras que têm filhos antes dos 14 anos? Região Norte lidera as taxas de maternidade infantil
A cada meia hora, uma criança que foi violada deu à luz a um bebê no Brasil. Essa foi a média do país, entre os anos de 2014 e 2023, calculada a partir da quantidade de nascimentos em que a gestante tinha de 10 a 14 anos de idade, segundo dados do DATASUS (Ministério da Saúde). Por ano, cerca de 20 mil meninas viraram “mães”, mas poderiam ter interrompido a gestação legalmente, por terem sido vítimas de estupro de vulnerável – como prevê o Código Penal brasileiro quando a relação sexual envolve menores de 14 anos.
Se criança não é mãe, o que impede que elas acessem o direito ao aborto? Quem são essas crianças e onde estão? O projeto Meninas Mães, da Revista AzMina, busca entender mais sobre essa realidade, traçando um mapa inédito no Brasil que mostra como os serviços de aborto legal estão longe das meninas que engravidam na faixa etária de 10 a 14 anos. Com isso, em uma década, 205 mil meninas se tornaram mães por não acessaram o direito de interromper a gestação após estupros presumidos. Algumas delas teriam que percorrer até 2.500 km para chegar em uma unidade de saúde que ofereça o atendimento.
Este projeto especial traz ainda reportagens investigativas, frutos de 10 meses de trabalho, com dezenas de entrevistas e histórias de meninas que pariram. Analisamos os números, viajamos até Assis Brasil, no Acre, um dos municípios com mais nascimentos de bebês filhos de crianças, e agora contamos um pouco desta realidade.
Escassez e enormes distâncias entre os serviços de saúde
A escassez de instituições que oferecem procedimentos de aborto legal no Brasil é um dos grandes obstáculos para que as meninas exerçam seus direitos. Não é fácil ter acesso à informação sobre quais hospitais e unidades de saúde de fato realizam a interrupção legal da gestação no país. A distância entre os serviços também é um desafio.
O Mapa do Aborto Legal, da ONG Artigo 19, mostra 115 locais no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) como provedores de aborto legal para vítimas de violência sexual. No entanto, desse total, apenas 73 confirmaram por telefone à ONG que realizam o serviço (contatos realizados em setembro de 2022). A Artigo 19 está fazendo uma atualização e ampliação deste mapa, em parceria com AzMina, a ser lançada neste ano de 2025 (e linkada aqui neste projeto em breve).
O Brasil teria condições de ampliar o acesso e realizar o aborto em várias unidades de atenção primária, se não fosse a estigmatização do assunto, conforme apontou um artigo fruto da tese de doutorado de Marina Jacobs referente ao cenário em 2021. O texto indicava que 1.115 estabelecimentos em 662 municípios brasileiros eram potenciais Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei, com a capacidade já instalada.
Mas não existe uma lista oficial, atualizada com frequência, onde a população possa consultar e ter certeza que vai conseguir fazer o procedimento naquele lugar. Para o levantamento do projeto Meninas Mães, iniciado em outubro de 2024, trabalhamos com os dados do Mapa do Aborto Legal, e utilizamos as taxas de fecundidade do DATASUS (a cada mil nascimentos com mães na faixa etária de 10 a 14 anos) no período de uma década – 2014 a 2023. Veja mais na metodologia ao final da matéria.
Trajeto para procedimento legal pode chegar a 2.500 km
Longas distâncias em situações de gravidez infantil podem aumentar a dificuldade para a realização do aborto (especialmente nos casos de estupro), significar mais riscos à saúde das crianças que gestam e até que elas optem por práticas inseguras de abortamento. A situação é especialmente grave em localidades isoladas na Amazônia Legal, onde o transporte público é praticamente inexistente e o custo de deslocamento é inviável para a maioria da população.
Em muitas dessas regiões, o trajeto até o serviço de aborto legal mais próximo pode ultrapassar mil quilômetros e exigir mais de um dia inteiro de viagem por estradas precárias ou até mesmo rotas internacionais — como é o caso de Uiramutã, em Roraima, cujo acesso alternativo envolve atravessar países vizinhos.
Meninas de qualquer cidade no Amazonas, para recorrer ao serviço de aborto legal mais próximo, considerando o Mapa da Artigo 19, precisam se deslocar até a cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima, para chegar à Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, por exemplo. Se a criança estiver no sul do estado, esse trajeto pode chegar a quase 2.500 km.
O roteiro atravessaria o Amazonas, incluiria trechos em balsa e mudaria até de fuso horário. De carro, seriam mais de 35 horas. A segunda alternativa é ir para a Santa Casa de Rondonópolis, no Mato Grosso, que fica a mais de 30 horas de carro.
No Mato Grosso, mesmo para as meninas do mesmo estado, a distância é um problema. Os dois serviços listados na região ficam a cerca de 400 km de Campinápolis e quase 600 km de Nova Nazaré. Essas são as duas cidades com as maiores taxas de fecundidade média para meninas com idades entre 10 e 14 anos no Brasil, de 2014 a 2023 (ver metodologia abaixo).
Fora o tempo de deslocamento, os meios de transporte são escassos e caros, e as crianças precisariam percorrer esses trajetos acompanhadas por adultos responsáveis. E, mesmo que o percurso corra bem, chegar até o hospital não garante que sejam atendidas.
Expostas a abusos sexuais e risco de morte
O direito ao aborto legal para essas crianças está longe de ser cumprido no nosso país. Nesse intervalo de uma década, para cada 10 meninas que pariram, apenas uma abortou. Enquanto o Brasil registrou 205 mil nascimentos de bebês com mães que tinham entre 10 e 14 anos, de acordo com dados do DATASUS (Ministério da Saúde), no mesmo período (entre 2014 e 2023), foram 18,9 mil internações de meninas por qualquer tipo de aborto, sendo apenas 828 casos por razões médicas e legais (situações previstas em lei).
Alguns casos de abuso e gravidez infantil geram repercussão na mídia e nas redes sociais – como o da “menina de Santa Catarina” que foi obrigada por uma juíza a “aguentar mais um pouquinho”, a “menina do Espírito Santo”, violentada pelo tio, e “a menina de Goiás”, estuprada por um conhecido do pai. Mas, ainda assim, para elas fazerem o aborto previsto em lei, foram necessários longos processos, ajuda de ativistas, profissionais da saúde, ministérios públicos e muita comoção nacional. E o que acontece com as meninas que engravidam e suas histórias não são conhecidas?
A maioria das meninas não acessa direitos nem políticas de prevenção à gravidez, e acabam ficando desprotegidas e expostas a abusos sexuais. Meninas negras (55%), de no máximo 13 anos (61%), são as principais vítimas de estupro, conforme o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que registrou quase 87 mil estupros e estupros de vulnerável em 2024. Elas também são a maior parcela de mães entre 10 e 14 anos.
Das quase 205 mil crianças que pariram entre 2014 e 2023 no Brasil, 74% (151,6 mil) eram pardas ou pretas, de acordo com o Sinasc. Outras 37,4 mil eram brancas e 8,8 mil eram indígenas. O sistema do DATASUS também mostra 533 amarelas e quase 6,6 que tiveram a raça ignorada ou não preenchida no momento do cadastro.
Somado aos traumas da violência, muitas dessas crianças precisam, então, lidar com uma gestação que mal compreendem, mesmo com a lei permitindo a interrupção. Lembramos que essa é uma das três situações nas quais o aborto é legal no Brasil – as outras são risco de morte para a pessoa gestante e anencefalia do feto.
Já os dados de mortalidade materna no Brasil revelam que 123 meninas de 10 a 14 anos morreram grávidas na última década, somente sete delas foram em decorrência de abortos. Destas, 80% (97 meninas) eram pretas, pardas ou indígenas e moravam no Norte (28) ou no Nordeste (59) do país.