A condenação de El Salvador por violência obstétrica no caso Beatriz alerta para os riscos do retrocesso no aborto legal no Brasil e violações aos direitos das mulheres.
No final de dezembro de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou El Salvador por episódio de violência obstétrica que ficou conhecido como “caso Beatriz”1. O país tem uma das leis antiaborto mais restritivas do mundo. No caso submetido ao órgão internacional, cujos fatos ocorreram em 2013, Beatriz sofria de algumas doenças de base que faziam de sua segunda gestação uma condição de alto risco. Feitos exames que comprovavam a anencefalia fetal, condição incompatível com a vida extrauterina, o Comitê Médico do Hospital Nacional de Maternidade passou a submeter o caso a uma série de consultas jurídicas a diversas autoridades para que fossem tomadas as decisões médicas sobre o atendimento à saúde de Beatriz.
Diante da ausência de protocolos de manejo de casos como o narrado, nenhuma decisão foi tomada. Ajuizada ação para interrupção da gravidez a fim de se preservar a vida e a saúde de Beatriz, concluiu-se que a saúde da paciente não foi colocada em risco em risco. Na vigésima sexta semana de gestação, foi realizada uma cesárea. A recém-nascida faleceu cinco horas após o parto em razão da anencefalia. Beatriz sobreviveu.
Levado o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sentença, estabeleceu-se que as condições médicas de base de Beatriz exigiam do Estado um dever especial de proteção, com prestação de assistência médica diligente e oportuna. Entendeu-se que a ausência de protocolos para atendimento de gestações de alto risco para a saúde da mãe inviabilizou a tomada de decisões médicas de forma adequada e oportuna pelos profissionais. A insegurança jurídica no manejo da situação de Beatriz levou à burocratização e judicialização do atendimento médico necessário. Entre os danos causados, têm-se os longos períodos de espera e internação para que se determinasse o tratamento, o que gerou tratamento desumano e foi interpretado como violência obstétrica.
A violência obstétrica, como tivemos oportunidade de expor de forma detalhada em nossa tese de doutorado, diz respeito à violação de direitos da mulher durante o ciclo gravídico-puerperal e em razão dele. Engloba, portanto, violações de diversos direitos da vítima, não apenas aqueles próprios da condição de gestante ou da relação médico-paciente. É causada por diferentes agentes – não apenas médicos, mas por quaisquer pessoas, nos termos do art. 186, do CC – e atingem direitos da mulher no ciclo gravídico-puerperal, que compreende pré-natal, parto, puerpério e situações de abortamento.
Como ocorrido com El Salvador, o Brasil já foi condenado internacionalmente por um episódio de violência obstétrica no famoso caso Alyne Pimentel. Na ocasião, a vítima no 6º mês de gestação procurou sistema de saúde e, em razão da assistência inadequada recebida, houve o óbito fetal e uma morte materna evitável. Ajuizada ação reparatória, 4 anos depois o caso ainda não havia sido julgado pelo TJ/RJ.
Em 2015, o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Comitê Cedaw) – que avalia a aplicação da Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro por violação dos direitos à saúde, ao acesso à justiça e não cumprimento da obrigação de regulamentar as atividades dos serviços de saúde privada, entre outros dispositivos da convenção.2 Além de determinar a indenização de mãe e filha de Alyne, as recomendações do Comitê ao Estado Brasileiro foram também de caráter geral, para que o Estado Brasileiro atuasse no sentido de garantir o direito à maternidade segura, por meio de um sistema de saúde acessível a todas as mulheres.
Apesar desse precedente, o direito à saúde no ciclo gravídico-puerperal ainda é constantemente desafiado, como atestam pesquisas, casos emblemáticos e o movimento de mulheres. Diferentemente de El Salvador, no Brasil, o CP permite o aborto em caso de estupro ou risco à saúde da gestante. Além disso, desde 2012, a anencefalia fetal é admitida como condição em que é lícita a interrupção da gestação (ADPF 54). Entretanto, a assistência à saúde da mulher que faz jus ao aborto previsto em lei é bastante desafiada.
Apesar de as primeiras previsões do aborto legal constarem do ordenamento jurídico brasileiro desde a década de 1940, o primeiro serviço foi regulamentado apenas em 1989 pela Prefeitura municipal de São Paulo. Em nível nacional, a regulamentação e estruturação dos serviços veio apenas em 1999, com a norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. A maior parte dos serviços foi implementada apenas após a reedição de tal norma em 2005. Em 2009, eram 60 serviços instalados em todas as regiões do país.
Ainda assim, em que pese a expansão, conhecidas as limitações encontradas pela mulheres que fazem jus ao aborto legal.3 Não apenas de ordem geográfica – distribuição dos serviços em alguns estados da federação, a maioria no sudeste e em capitais -, mas também ausência de equipe especializada, falta de coleta de material para possível identificação de agressor sexual, além de empecilhos colocados em nível individual, como a exigência de boletim de ocorrência, laudo do IML, autorização de comitês de ética hospitalar e até de alvará judicial para a realização do aborto legal. Isso sem falar das objeções de consciência por parte dos profissionais para além dos limites do exercício regular do direito.
Nos últimos anos, para além de tais limitações informalmente impostas ao exercício do direito ao aborto legal, intensificaram as medidas institucionais para embaraçamento e impedimento de sua realização. Entre os exemplos estão o fechamento de serviços públicos especializados, como o da Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo;4 e a perseguição e punição disciplinar de profissionais por conselhos regionais de medicina, como ocorrido em São Paulo.5 Em 2024, houve também a edição da resolução 2.378/24 pelo Conselho Federal de Medicina a fim de proibir a realização da técnica clínica de assistolia fetal, indicada pela OMS para o cuidado com o aborto em caso de gestações em fases mais avançadas.6
Há ainda relatos de cancelamentos e reagendamentos injustificados de procedimentos já marcados, suspensão de atendimentos por telemedicina – ferramenta importante especialmente em contextos de interiorização -, e até a exclusão deliberada de técnicas menos agressivas que a curetagem do rol de procedimentos autorizados.7 Há quem afirme haver verdadeira “política da obstrução”8 [ao exercício do direito ao aborto legal].
Paralelamente, no Congresso Nacional também ganham espaço iniciativas legislativas que buscam restringir ainda mais o já limitado acesso ao aborto no Brasil. Há propostas de emenda à Constituição que pretendem estabelecer o “direito à vida desde a concepção” – V.g. a PEC 164/12, admitida pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em novembro de 20249 -, o que, se aprovado, eliminaria as hipóteses atuais previstas no CP e reconhecidas pelo STF, tornando a norma brasileira semelhante à de El Salvador. Existem, ainda, projetos de lei10 com o fim de: obrigar médicos e hospitais a registrar boletins de ocorrência e a notificar autoridades policiais antes da realização do aborto legal, desestimulando mulheres a buscar os serviços; e equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, punindo mulheres e profissionais de saúde com 6 a 20 anos de reclusão, mesmo em caso de gravidez resultante de estupro.
Esses movimentos indicam um cenário preocupante. Apesar do arcabouço jurídico que admite hipóteses de aborto legal no Brasil, a combinação de desmonte institucional, perseguição de profissionais, edição de normas e propostas legislativas restritivas colocam o país em rota de colisão com os compromissos assumidos no plano internacional. O alerta que vem da condenação de El Salvador não deve ser ignorado: um Estado que não garante o acesso efetivo ao aborto lícito e à proteção da saúde da mulher, seja por ação ou omissão, corre sério risco de ser responsabilizado perante tribunais e organismos internacionais por violações sistemáticas de direitos humanos. Além da evidente violação a direitos de milhares de mulheres, o Brasil, ao continuar nesse caminho, arrisca também sua reputação internacional.