Traumas faciais: a violência de gênero que tenta descaracterizar mulheres

ARRASTÃO FEMINISTA

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

05 de setembro, 2025 AzMina Por Mariana Rosetti e Paola Churchill

Mais de 60% das agressões contra vítimas de violência doméstica são no rosto, apontam estatísticas apresentadas pelo Governo Federal

  • Agressores atacam rostos de mulheres para destruir identidade, beleza e autoestima, marcando-as social e psicologicamente.
  • Vítimas como Juliana, Silvana, Érika e Elaine sofreram desfigurações graves, múltiplas cirurgias e perdas permanentes.
  • Projetos de lei e ações no STF buscam apoio financeiro e penas mais severas, mas prevenção segue como grande desafio.

Há cerca de um mês, circularam as imagens das câmeras de um elevador em Natal com uma cena que se repetiria infinitamente nas redes sociais. Durante minutos intermináveis, Igor Eduardo Pereira Cabral, de 29 anos, desferiu 61 socos em Juliana Garcia dos Santos, de 35 anos. O ataque teve como alvo principal o rosto da vítima. Juliana foi submetida a cirurgias reparadoras que duraram horas, enquanto Igor foi preso preventivamente.

Sessenta e um socos. Dezessete facadas. Quatro horas de tortura. Quarenta e uma cirurgias. Antes de cada um desses números — que tentam traduzir a brutalidade de uma violência —, tem uma mulher. Juliana, Elaine, Silvana e Érika são algumas das vítimas de homens que transformaram seus rostos em alvos. Um padrão perverso: em mais de 60% dos casos de violência doméstica, a face é a região mais atingida, segundo estudos indicados pelo Governo Federal brasileiro.

Especialistas ouvidas pela reportagem apontam que o objetivo dos agressores vai além de ferir fisicamente. Trata-se de uma violência simbólica: atacar o rosto é atacar a identidade de mulheres vítimas.

17 facadas

Em 13 anos de relacionamento, Silvana Maria, com 47 anos hoje, viveu todas as fases do ciclo da violência doméstica. Quando saía para jantar com Kléber*, ele a posicionava de frente para a televisão — para que ela só olhasse para lá, nunca para outras pessoas. “Eu achava que era normal, que era amor, cuidado, né? Mas não, é doentio.”

A primeira agressão, um soco no rosto, aconteceu na comemoração de fim de ano de 2019. Foi quando ela solicitou uma medida protetiva. Por 7 meses, Kléber rondou espaços que a ex-mulher frequentava, sem nunca descumprir a distância judicial de 500 metros. Até 24 de setembro de 2020, quando invadiu a casa de Silvana.

Ela tinha acabado de chegar de uma confraternização e se assustou ao encontrá-lo. Kléber perguntou onde ela estava. “Falei: ‘com as minhas amigas’, e ele pediu meu celular”. Quando ela entregou o aparelho, começaram as agressões. Foram 17 facadas no rosto, no crânio e no peito de Silvana.

Para a psicóloga Liliany Souza, doutora no programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), a agressão facial representa um dos aspectos mais cruéis da violência contra mulheres por atingir a construção social do feminino.

“As mulheres são ensinadas que o capital social delas é a beleza. A estética não é apenas aparência — é o que define as chances de reconhecimento no trabalho, nas relações sociais e até na autonomia financeira”, explica Liliany. Enquanto os homens têm sua identidade social construída em torno do provimento e da força, mulheres são condicionadas a associar seu valor à aparência física.

Silvana ficou internada oito dias no Hospital do Grajaú, zona sul de São Paulo. Passou por cirurgia de reconstrução facial, tendo que colocar uma placa de titânio no local da maçã do rosto e quase perdeu o olho direito. Desde então, tem visão parcial e depende de óculos para enxergar.

41 cirurgias

O caso de Silvana se enquadra no perfil identificado por Suzana Dourado e Ceci Noronha no artigo ‘Marcas visíveis e invisíveis: danos ao rosto feminino em episódios de violência conjugal’, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva. Elas analisaram 326 boletins de ocorrência da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Salvador, entre 2004 e 2008, e verificaram que em 63,2% dos casos registrados houve trauma na face, cabeça ou pescoço da mulher agredida pelo parceiro íntimo.

A pesquisa também compilou dados de diferentes estudos internacionais realizados entre 1985 e 2010, mostrando que a prevalência de lesões faciais em mulheres vítimas de violência doméstica varia entre 37,5% e 81% dos casos. O levantamento revelou ainda que, na capital baiana, cerca de 28% das agressões foram cometidas por ex-parceiros.

Os padrões se repetem Brasil afora, como mostra o ocorrido com Érika Bargo, uma mulher transexual, de 34 anos, em São Paulo. Ela foi submetida a 41 cirurgias após ter 45% do corpo queimado em 2016 pelo ex-companheiro. Passou quatro meses na UTI, perdeu os movimentos da mão esquerda e deixou de se reconhecer no espelho devido aos ferimentos.

Durante o relacionamento, relembra Érika, “ele dizia: ‘se eu não te matar, vou te deixar toda desfigurada”. Além disso, “todas as vezes que ele me agredia, era sempre no rosto. Para quê? Para eu ficar marcada. Porque assim eu não sairia na rua, e daria tempo de ele fazer o que quisesse comigo.”

Érika conseguiu romper o relacionamento com a ajuda de uma amiga, que lhe ofereceu abrigo. Planejou a mudança para outra cidade e marcou uma despedida em um bar próximo à avenida Paulista, no centro da cidade. Foi na comemoração que o ex-marido apareceu com uma garrafa de dois litros de etanol.

Ela estava de costas, se preparando para ir embora, quando sentiu o calor das chamas. “Ele jogou [álcool] no meu cabelo, que era comprido. Quando virei, vi que era ele. E foi aí que [o fogo] atingiu a parte mais danificada — o pescoço.” As consequências foram permanentes, com perda dos movimentos da mão direita. “Tenho duas profissões — técnica de enfermagem e cozinheira. Uma não posso exercer devido à mão, a outra, pelo calor, que me incomoda muito.”

Hoje, Érika recebe um auxílio do INSS devido à deficiência no valor aproximado de R$ 1.500, insuficiente para cobrir os custos do tratamento. “O SUS tem uma estrutura, mas nem tudo ali é dado”, explica. Ela ainda precisa comprar medicamentos, cremes para queimaduras e bancar suas despesas rotineiras. A família, mesmo com dificuldades financeiras, fez empréstimos para ajudá-la. O agressor de Érika ficou foragido por três anos antes de ser preso, agora ele espera o julgamento do caso ainda em 2025.

4 horas de tortura

Quando a empresária Elaine Caparroz, 61 anos, se olhou no espelho do banheiro do Hospital Casa de Portugal, no Rio de Janeiro, entrou em estado de choque. Ela tinha 55 anos quando chegou à unidade com o rosto desfigurado, após ter sido torturada durante 4 horas por Vinícius Batista Serrana, na madrugada de 17 de fevereiro de 2019.

Depois de 8 meses de conversas pelas redes sociais, em que ela deixou claro sua intenção de amizade, concordou em recebê-lo em casa, na Barra da Tijuca. Da meia-noite às 4h, Elaine foi vítima de espancamento, estupro e agressões físicas e psicológicas. “Ele me dava um monte de socos, aí eu desmaiava e ele ficava esperando eu acordar, e quando acordava, ele recomeçava”, conta.

Passou cinco dias na UTI. “Ele fraturou meu nariz, fundo de olhos, glândulas orbiculares, fraturou os dentes, estraçalhou meus lábios, minhas bochechas, minhas gengivas. Foi uma coisa absurda. Eu quase morri”, relata Elaine.

Quando finalmente foi para o quarto, encontrou o espelho coberto por uma toalha, uma tentativa da equipe médica de preservá-la. Ao ver o próprio reflexo, desabafou: “meu Deus, eu tinha consciência da gravidade, mas não sabia o nível que era”. Em meio ao espancamento, “ele comentava: ‘nossa, como você é bonita’. Ele queria destruir o meu rosto de todas as formas.”

Elaine conversou com a reportagem d’AzMina por videochamada. Na ocasião, vestia uma faixa de contenção facial já que, dias antes, passou por mais um procedimento cirúrgico para reposicionar músculos da face. Já foram dezenas. Por conta das agressões, sente dores de cabeça e de ouvido até hoje, e dificuldades para enxergar.

Em dezembro de 2024, a 7ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro determinou que o agressor de Elaine era inimputável — não poderia ser responsabilizado pelo crime – por ter um distúrbio chamado parassonia. Embora não houvesse dúvidas da autoria, uma vez que ele confirmou as agressões, a justiça definiu que ele não precisaria pagar indenização à vítima.

O apartamento alugado onde ocorreu o crime foi inteiramente danificado pelo agressor, mas o prejuízo foi só dela. “Eu tinha R$ 500 mil guardados. Gastei todo o meu dinheiro. Todo. Com tratamentos, para restaurar meu apartamento e para me manter, pois não tinha condições de trabalhar, fisica e psicologicamente”, desabafa.

Acesse a reportagem no site de origem.

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