Lawfare antitrans: a nova ofensiva contra direitos de pessoas trans, por Bruna G. Benevides

17 de setembro, 2025 Portal Catarinas Por Bruna G. Benevides

Instrumentos jurídicos são usados em nova ofensiva contra comunidade trans.

Nos últimos anos, o Brasil tem assistido ao surgimento de uma nova ofensiva contra os direitos humanos: o lawfare antitrans. Trata-se do uso calculado de instrumentos jurídicos — ações civis, notificações extrajudiciais, representações e pareceres técnicos — como arma política para restringir, desgastar e intimidar a comunidade trans.

Sob o discurso de “defesa de mulheres e crianças”, essa prática vem se consolidando como um dos principais pilares do ecossistema antigênero no país e guarda conexões com movimentos de extrema direita ao redor do mundo.

O mecanismo é sofisticado. Em vez de promover pautas históricas da luta feminista — como o enfrentamento à violência doméstica, a igualdade no mercado de trabalho ou os direitos reprodutivos —, entidades e perfis autodeclarados em defesa de mulheres e crianças têm priorizado ações para restringir a autodeterminação de gênero, questionar políticas de cotas em universidades, barrar o uso do nome social e impedir o acesso de mulheres trans a banheiros, esportes e políticas públicas.

Nesse contexto, o direito é transformado em trincheira ideológica: em vez de assegurar garantias constitucionais, é instrumentalizado para negá-las.

Casos recentes ilustram bem a lógica. Temos visto uma série de tentativas de suspender conquistas como cotas trans em universidades federais e concursos, de impedir políticas de saúde específicas e até de processar órgãos oficiais por reconhecerem a alarmante situação de violência e violações de direitos humanos contra pessoas trans no Brasil.

Ainda que decisões judiciais tenham rejeitado algumas dessas iniciativas, a ofensiva cumpre seu papel: desgastar coletivos, deslegitimar dados científicos, negar a realidade material em que pessoas trans estão inseridas, pressionar instituições governamentais e difundir pânico moral fazendo eco às políticas antigênero da extrema direita.

O objetivo desses grupos não é apenas vencer uma ação, mas instalar uma atmosfera de dúvida e insegurança em torno da cidadania trans, com o objetivo de restringir direitos e negar a diversidade de gênero.

Essa estratégia se conecta a uma rede internacional financiada por grupos religiosos ultraconservadores e da ultradireita. A retórica utilizada replica argumentos já observados em países como os Estados Unidos, a partir das ordens executivas antitrans de Donald Trump e do caso Skrmetti na Suprema Corte norte-americana, que proibiu cuidados de afirmação de gênero para menores, além de diversas legislações e decisões judiciais que vêm restringindo direitos de pessoas trans nos esportes, no acesso à saúde, na proteção específica e até na própria existência de crianças trans.

No Reino Unido, uma decisão judicial recente determinou o reconhecimento legal apenas de dois gêneros com base no “sexo biológico”. No Brasil, essas narrativas se replicam facilmente e encontram eco entre parlamentares alinhados ao bolsonarismo, à extrema direita e a grupos ultraconservadores que atuam em legislativos municipais, estaduais e no Congresso, bem como em outras instituições do Estado, seja no Executivo ou no Judiciário.

Além disso, se somam a perfis e grupos antitrans que se sentem fortalecidos e vêm sendo apoiados por esses setores, sobretudo coletivos de mulheres cisativistas e feministas radicais transexcludentes.

O resultado é a multiplicação de retrocessos em termos de narrativas regressivas sobre identidade de gênero, ampliação da disseminação de fake news e desinformação, ataques às políticas públicas conquistadas, recuos governamentais na garantia de direitos e a proposição massiva de projetos de lei que buscam proibir direitos trans e naturalizar a ideia essencialista de “sexo biológico” como único marcador válido em políticas públicas.

O impacto é profundo. Em um país que já lidera as estatísticas globais de assassinatos de pessoas trans e onde a marginalização social é estrutural, o lawfare antitrans adiciona mais uma camada de violência — desta vez simbólica, burocrática e institucional, considerando que tem sido o judiciário o principal defensor dos direitos LGBTQIA+ ante a omissão legislativa e a falta de compromisso do executivo.

Cada petição protocolada, cada ação judicial, carrega o peso de transformar direitos humanos em meras opiniões contestáveis, esvaziando o sentido das lutas por direitos da comunidade LGBTQIA+ e abrindo caminho para que a transfobia seja relativizada.

A consequência é a fragilização de garantias reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como nas decisões da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, que assegurou o direito de pessoas trans alterarem nome e gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia ou autorização judicial, e do Mandado de Injunção (MI) 4733 junto à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, que criminalizou a homofobia e a transfobia ao equipará-las aos crimes de racismo previstos na Lei 7.716/89.

O que requer maior atenção no momento em que a corte suprema tem sido vítima de ataques diversos advindos da extrema direita.

Também são alvo desses ataques as proteções estabelecidas por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Opinião Consultiva 24/2027 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que têm ampliado o sentido dos direitos humanos para garantir proteções específicas a pessoas trans e de gêneros diversos ao redor do mundo.

Os desafios, portanto, são enormes. É preciso assegurar o efetivo cumprimento das decisões do STF e sua devida aplicação, fortalecer a resistência institucional contra esse uso predatório do direito, garantir que figuras públicas, partidos políticos, instituições sociais e populares, universidades, tribunais e órgãos públicos não sejam capturados por narrativas antitrans, ampliar as medidas de proteção e acesso à justiça e a direitos básicos, a garantia da produção e a validação oficial de dados sobre a realidade trans, e assegurar mecanismos de proteção jurídica para movimentos trans, coletivos e seus aliados.

Mais do que reagir a processos, é necessário compreender que estamos diante de uma estratégia global que se vale do formalismo jurídico para legitimar a exclusão, atacar instituições e derrubar conquistas.

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