Dorca, a menina indígena de 12 anos que morreu por estar grávida

24 de setembro, 2025 Portal Catarinas Por Paula Guimarães

Dorca falava três línguas, warao, português e espanhol, mas nenhuma foi suficiente para traduzir seu direito de viver.

Aos cinco anos, Dorca era símbolo de esperança: uma das crianças indígenas venezuelanas incluídas nas escolas públicas de Manaus, dentro de um programa de integração para refugiados. Vestida de uniforme escolar e com olhos brilhantes, estampou comunicado da Acnur, em 2018, ao lado da tia.

Sete anos depois, Dorca, aos doze, já não frequentava a escola. Morava com os pais e quatro irmãs em uma barraca de lona na ocupação Terra Mãe, em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. Foi ali que adoeceu e entrou em agonia, enquanto a comunidade tentava ajudá-la com rezas e cuidados caseiros. Em 13 de julho, morreu no Centro Materno Infantil de Betim, após uma cesariana de emergência diante de complicações graves da eclâmpsia.

Dorca Mata Rattia sofreu uma crise de eclâmpsia que evoluiu para hemorragia cerebral e choque circulatório. O atestado de óbito registrou como causas da morte “choque, hemorragia subdural aguda e eclâmpsia”. Ela completaria 13 anos no último 6 de setembro.

O diagnóstico de pré-eclâmpsia chegou tarde demais. Trata-se de uma intercorrência grave na gestação, ligada à má formação da placenta, que aumenta a pressão arterial e pode levar a convulsões, hemorragias cerebrais e falência de órgãos. Em meninas grávidas, o risco de incidência e complicações fatais é até cinco vezes maior do que em mulheres adultas.

O único tratamento eficaz para salvaguardar a vida é a interrupção da gestação, conforme preconizado na legislação brasileira, já que o procedimento adotado nestas situações é de retirada da placenta para que o quadro clínico não se agrave e não evolua.

A reportagem visitou a comunidade após o sepultamento da menina, ouvindo familiares, lideranças Warao e representantes de órgãos públicos para reconstituir os fatos que antecederam sua morte.

Tudo aconteceu em pouco mais de três dias. Na quinta-feira, 10 de julho, Dorca foi atendida na Unidade Básica de Saúde Campos Elíseos. Chegou ao atendimento com náuseas e dor de cabeça, mas recebeu apenas receita de ácido fólico, remédio para enjoo e encaminhamentos para exames.

Ao chegar ao posto, acreditavam que Dorca estava no início da gravidez — e saíram de lá sem receber qualquer informação que indicasse o contrário, mesmo já estando com 32 semanas, tampouco foram informados da gravidade da situação. Junto à requisição do exame, constava o lembrete de que a consulta havia sido marcada para 29 de julho, quando ela já completaria 35 semanas de gestação.

Em nota, o órgão afirmou que, “em razão da gestação já avançada e da idade da paciente”, os exames de Dorca teriam sido priorizados. Porém, documentos obtidos pelo Catarinas mostram que a unidade emitiu apenas pedidos de exames de “primeiro trimestre”, protocolo inicial do pré-natal — sem qualquer menção ao estágio avançado da gravidez ou encaminhamento imediato para urgência.

No entanto, o pai, Wilme Mata, 39 anos, relatou que o atendimento foi rápido e sem a triagem adequada, já que não houve aferição da pressão arterial — condição essencial para diagnosticar a pré-eclâmpsia. “Eles atenderam, mas não viram a pressão dela. Quando ela saiu de casa para o posto de saúde estava vomitando muito”, conta Wilme.

O órgão afirmou ainda que Dorca chegou andando, “sem qualquer sinal clínico de anormalidade”, se recusou a responder perguntas da equipe médica e que a única queixa relatada pela tia era enjoo.

A prefeitura afirmou que o Conselho Tutelar teria sido acionado por telefone durante o atendimento. No entanto, um conselheiro ouvido pela reportagem disse que o órgão só foi notificado no sábado, pela equipe do hospital, e formalmente apenas na segunda-feira — após a morte de Dorca — quando já não era mais possível adotar medidas protetivas.

No atendimento no posto de saúde, ninguém mencionou o direito ao aborto legal, nem os riscos de uma gestação infantil. Pela lei brasileira, toda gravidez em menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, o que assegura esse direito. O diagnóstico de pré-eclâmpsia também autoriza a interrupção, diante do risco à vida da menina.

Os pais sabiam da gestação havia cerca de um mês, mas ainda não tinham procurado atendimento médico. “Como ela estava bem, a família toda decidiu ficar em casa”, conta o tio dela, Andy Tovar, 24 anos, ao Catarinas.

“A gente não esperava uma morte assim. Ela ainda era uma criança, só tinha 12 anos. Tinha muita vida pela frente’, lamenta o tio paterno.

Entre rezas, socorro e diagnóstico tardio

Durante aquela noite e madrugada que voltou do posto de saúde, Dorca já não parecia mais a mesma. Tentou tomar remédio para náusea, mas seu corpo já não reagia bem.

A líder comunitária Flávia Gomes Fabiano, 42 anos, tentou confortá-la com alimentos leves e um par de meias para espantar o frio. Incentivou Dorca a comer frutas e disse à família que, se o quadro piorasse, a levaria ao médico. “Estava frio, coloquei as meias no pé dela e falei com eles pra pegar a faca pra ela descascar as laranjas”.

O pai relata que, durante a madrugada, Dorca se queixou de dor de cabeça e muito sono, até perder a consciência. Alternava entre períodos de sonolência profunda e crises convulsivas.

A família passou a madrugada em vigília e rezas. Na cosmovisão da família pertencente à etnia indígena Warao, acreditava-se que Dorca pudesse estar sob efeito de um feitiço, o que retardou a busca por atendimento hospitalar.

No dia seguinte, sexta-feira bem cedo, Dorca já não respondia a estímulos, quando Flávia chegou à barraca de lona para prestar socorro. O tio havia ligado pedindo ajuda. “Eu perguntei se ela ainda estava vomitando. Ele respondeu: ‘Flávia, desce e veja com seus olhos’”, relembra a liderança.

Ao chegar, encontrou Dorca deitada, com uma bíblia na mão, rodeada pela família. Estava inconsciente. A liderança, que mora perto da ocupação e tem uma mercearia a cerca de 200 metros dali, foi quem a levou ao hospital com a ajuda do marido. O Samu demoraria e não havia o que esperar.

Enquanto socorria Dorca, Flávia ligou para o posto de saúde para que a equipe entrasse em contato com a maternidade onde estavam levando a menina, para avisar da gravidade do caso. A assistente social atendeu ao pedido e fez essa ligação, informando que Flávia estava a caminho com a menina. “Eu vi que era uma questão de hora”.

Na maternidade, Dorca recebeu prioridade de atendimento. Aparentemente inconsciente, foi encaminhada imediatamente a exames de urgência.

“Eu a chamava pelo nome, falava ‘calma, Dorca, eu tô aqui’, segurava na mão dela. Ela abria os olhos por instantes, mas não disse uma palavra desde que saiu de casa até o hospital”, recorda a liderança comunitária.

A menina foi submetida a uma ultrassonografia de urgência, que revelou um estágio avançado da gravidez — cerca de 32 semanas, mais tempo de gestação do que os familiares imaginavam. A notícia causou espanto, sobretudo no pai, que não acreditava que a filha estivesse tão próxima do fim da gestação e resistia à ideia de uma cesariana.

Durante o exame, os médicos também notaram sinais de sonolência excessiva e decidiram realizar uma tomografia para investigar possíveis complicações neurológicas. Diante dos riscos, a equipe optou por antecipar o parto. “Logo saiu a notícia de que tinha nascido um bebê. O pai entrou em choque, eu entrei em choque”, lembra Flávia.

Por volta do meio-dia, ela passou por uma cesariana de emergência. O bebê foi levado para a incubadora, enquanto Dorca apresentou um acidente vascular cerebral, consequência da pré-eclâmpsia, e precisou ser encaminhada às pressas para uma cirurgia neurológica. “O médico deixou bem claro a situação e falou que era só pegar com Deus, né? Que ela era uma menina forte, que ela estava resistindo muito”, relata Flávia.

No sábado, o quadro se agravou, e Dorca sofreu paradas cardíacas. Diante da gravidade, a equipe médica flexibilizou protocolos e permitiu que pai, mãe e tias permanecessem com ela na UTI. Também autorizaram orações no leito, em respeito às práticas religiosas da família.

No domingo de manhã, Dorca não resistiu. Faleceu aos 12 anos, após dias de sofrimento que poderiam ter sido evitados com diagnóstico precoce e acesso a cuidados adequados. “Eu fiquei muito triste. Sabe, ver a maneira que ela morreu, a maneira que ela ficou”, conta a vizinha.

O bebê sobreviveu e permaneceu cerca de 20 dias na UTI antes de receber alta. Foi registrado em nome de Dorca e do rapaz que a engravidou.

Andy, o tio, ressaltou que eles reconhecem que essa situação não deveria ter acontecido com Dorca, que ainda era muito jovem.

“Se esse homem não tivesse engravidado a Dorca, isso não teria acontecido. Ela era ainda menina de 12 anos, uma criança, não era nem adolescente”, destaca.

“O que nós queremos é que alguém responda pela morte dela”, complementa.

Ao serem questionados, pai e tio afirmaram que teriam autorizado a interrupção da gestação se soubessem que essa era a única forma de salvar a vida de Dorca.

O caixão no lugar da rede

O velório de Dorca foi realizado na ocupação, durante uma noite inteira, de segunda para terça, um dia após o falecimento, prolongando o prazo habitual das cerimônias fúnebres. Houve resistência por parte da família em realizar a cerimônia fora do território onde vivem, tampouco aceitaram que ocorresse durante o dia.

A mãe e a avó insistiram que o corpo de Dorca deveria permanecer na barraca, exatamente na posição onde antes ficava sua rede, na qual dormia, apesar das limitações de espaço. “Então, teria que ser na posição que a rede ficava, assim a gente fez, né? Colocamos o caixão dela próximo de onde ela dormia”, contou Flávia.

Alguns familiares se revezavam ao lado do caixão, se lamentando em voz baixa. Em determinado momento, Flávia ouviu palavras em warao, e pensou que uma das tias de Dorca estivesse cantando uma canção tradicional.

Curiosa, perguntou ao tio da menina o que ela dizia. Ele explicou: era um lamento. A tia questionava Dorca, triste, por não ter escutado os conselhos tantas vezes repetidos: “Menina não se envolve com menino. Menina não fica no meio de menino.”

Dois dias após sua morte, Dorca foi sepultada no cemitério Parque das Cachoeiras, em Betim, com orações conduzidas por um pastor Warao. Durante o velório, uma tia de Dorca tentou agredir o pai do jovem responsável pela gravidez da menina. “Perguntei pra ele ‘por que você veio?’ Você não podia ter vindo. Aí ele falou comigo: ‘Flávia, eu não tenho culpa’”, relembra a liderança.

Warao, português, espanhol não traduziram o direito à vida para Dorca

Dorca provavelmente engravidou por volta de meados de dezembro de 2024. Um mês depois, seguiu junto com a família em viagem a Vitória da Conquista (BA), de onde só voltaram em maio. Durante esse período, enjoos e aversão a certos alimentos acenderam o sinal de alerta. Um teste de farmácia confirmou a suspeita.

O pai descreveu Dorca com carinho: “Minha filha era boa, carinhosa, gordinha…”. Ele contou que, por causa do corpo dela, ninguém suspeitava da gravidez. “Vocês nem imaginavam”, disse, reforçando que a barriga não parecia de uma criança gestante. “Ela estava muito forte, não sabia de nada”. A surpresa foi grande, e ele relembrou com tristeza o quanto tudo aconteceu de forma silenciosa, sem que a família tivesse qualquer sinal claro do que estava por vir.

Assim que souberam da situação, o pai de Dorca chamou o jovem responsável pela gravidez para resolver a questão apenas entre as famílias. Convocou o rapaz, o pai e a mãe dele para uma conversa. O acordo era que o jovem passaria a morar com ela na barraca da família, mas isso não aconteceu. “Tentamos resolver entre as famílias, mas ele não cumpriu o combinado de cuidar dela e do bebê”, conta o pai.

A idade do rapaz foi alvo de divergências: enquanto algumas pessoas afirmavam que ele teria cerca de 19 anos, a família apresentou documentos à polícia que indicam que ele tinha 16. Diante da morte de Dorca, seguida do descumprimento do que havia sido acordado entre as famílias, os parentes agora querem que o rapaz seja responsabilizado, conforme a lei brasileira. Embora a gestação tenha sido inicialmente aceita por acordo entre as famílias, a tragédia revelou a gravidade da violação.

Segundo o tio e o pai, Dorca sonhava em voltar a estudar. Em Minas Gerais, ela teria frequentado a escola enquanto a família viveu em Belo Horizonte, em 2022 e 2023, mas deixou de estudar após a mudança para Betim.

A transferência não foi concluída por dificuldades financeiras e entraves burocráticos para obter a documentação escolar, de acordo com os dois parentes. “Eu sempre falava para ela estudar, aprender, conseguir trabalho. Não esperava que fosse ter um filho tão cedo”, relata o pai.

Entramos em contato com as secretarias municipais de Educação. A de Belo Horizonte informou que a Lei Geral de Proteção de Dados impede a divulgação da trajetória escolar dos alunos e acrescentou que os pedidos de transferência devem ser feitos pelo representante legal do menor e são concedidos imediatamente.

Já a de Betim foi questionada sobre a matrícula e o acompanhamento de Dorca, além das políticas de proteção de crianças indígenas, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Fora da escola, Dorca ajudava em casa: gostava de brincar, especialmente de futebol e vôlei, e também cuidava das irmãs. Já grávida, chegou a cuidar da irmã recém-nascida durante o primeiro mês de vida. “Quando soube da gravidez, ela entendeu, passamos muita orientação pra ela sobre como é estar grávida e como é cuidar de um bebê”, disse o pai. “Minha filha brincava com a família, jogava bola, agora ficou esse vazio”, revela.

O tio acredita que Dorca ficou triste ao descobrir a gravidez, enquanto o pai afirma que a tristeza veio apenas depois, quando o jovem que a engravidou a abandonou e não cumpriu o compromisso de cuidar dela.

Dorca falava warao, português e um pouco de espanhol, mas nenhuma língua foi capaz de alcançar o mundo que garantiria a ela a chance de escolher viver.

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