No Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, o Brasil se destaca pelos retrocessos que ampliam desigualdades
Mais de 30 anos após a criação do Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, o Brasil ainda enfrenta uma série de retrocessos acerca do tema. A data foi instituída no ano de 1990, na Argentina, durante o V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. O 28 de setembro foi criado para se tornar um marco na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e pessoas que gestam.
Enquanto países como Cuba, Uruguai, Argentina, Colômbia e Guiana Francesa já asseguram o aborto legal e seguro, o Brasil continua preso ao conservadorismo. Além de criminalizar a interrupção voluntária da gestação, acumula projetos de lei que tentam restringir ainda mais o pouco acesso existente e ignora políticas públicas de justiça reprodutiva.
Mariane Marçal, que é assistente de coordenação de projetos e incidência política da ONG Criola, enfermeira obstétrica, sanitarista e mestre em Relações Étnico-Raciais, destaca a importância da luta pelos direitos reprodutivos e socioeconômicos das mulheres negras, como forma de garantir acesso e dignidade.
“A luta por esses direitos é essencial, porque envolve garantir saúde, dignidade e escolhas com liberdade. No Brasil, garantir a saúde significa enfrentar diversas injustiças profundas que afetam especialmente mulheres negras, pobres e periféricas.”
Um Congresso que, há décadas, projeta controlar os corpos das mulheres
No período de 2015 a 2025, pelo menos uma dezena de projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional tratando da questão do aborto, a maioria deles com o intuito de restringir qualquer acesso ao procedimento. Entre eles estão o PL 1904/2024, conhecido como “PL do Estupro”, que equipara o aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio. Além do projeto de Lei 5069/2015, de autoria do então deputado Eduardo Cunha, que exigia que a mulher apresentasse boletim de ocorrência e passasse por exame de corpo de delito para ter acesso ao atendimento médico. Já a PEC 164/2012, conhecida como “PEC da Vida”, que voltou à tona em 2024, propõe a proibição do aborto em qualquer circunstância.
Luana Souza, ativista do Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva do Nordeste, ressalta que o Brasil vive um enorme retrocesso nos últimos anos, com o crescimento da bancada de extrema direita Frente Parlamentar Evangélica (FPE) na Câmara dos Deputados, composta por 219 deputados.
“A gente não pode perder de vista como esse crescimento do legislativo a partir de pautas antiaborto faz com que tenha uma maior fragilidade nas conquistas que já alcançamos.”
Grande parte desses projetos têm algo em comum: são de autoria de parlamentares homens e brancos. Em contrapartida, as principais atingidas pela falta de políticas públicas que conceda o direito a justiça reprodutiva e que legalize o aborto são meninas e mulheres negras. Segundo o Dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, publicado pela ONG Criola, houve 209.520 internações por aborto, entre os anos de 2020 e 2021. Desse total, 52.142 (24,89%) eram mulheres brancas, enquanto que as mulheres negras representaram 100.520 (47,98%). Em relação ao óbito, 73 mulheres morreram, sendo que 13 (17,81%) eram brancas e 33 (45,21%) mulheres negras.
“Isso é um retrato cruel da desigualdade racial e das violências históricas enfrentadas por mulheres negras, desde o processo de escravização. Não é coincidência, é consequência de um sistema que discrimina, inviabiliza as vidas e as vozes de mulheres negras. O acesso à saúde reprodutiva é negado de forma sistemática para mulheres negras”, avalia Mariane.
Quem protege as meninas negras?
Além da falta de acesso a saúde básica, mas principalmente, a reprodutiva, as meninas e mulheres negras continuam sendo as maiores vítimas de abuso sexual no Brasil. Dados apresentados na 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, revelaram que houve 87.545 casos de violência sexual em 2024. Desse total, 48.675 (55,6%) foram contra mulheres e meninas negras. O estudo também revela que o maior índice de estupros de vulneráveis da história, desde que as edições do anuário passaram a ser divulgadas, tem meninas negras com idade entre 10 e 13 anos como maiores vítimas .
Mesmo com a lei que garante às vítimas de violência sexual o direito de realizar um aborto, o acesso a esse procedimento ainda é marcado por burocracias e barreiras, mesmo quando a vítima é menor de idade. Um caso emblemático ocorreu em 2020, envolvendo uma menina de 10 anos, moradora de São Mateus (ES), que engravidou em decorrência de estupro cometido pelo tio. Encaminhada a um hospital em Vitória (ES) para realizar o aborto, garantido pela legislação brasileira, ela teve o pedido negado.