Manas do Marajó lutam contra estigma: ‘Aqui não é antro de exploração sexual’

13 de outubro, 2025 Folha de S. Paulo Por Flávia Mantovani e Mathilde Missioneiro

  • Moradoras da maior cidade marajoara dizem sofrer preconceito devido a narrativas que colocam o arquipélago como símbolo de violência sexual contra crianças
  • Mulheres reclamam de sensacionalismo e admitem que problema existe, mas não é naturalizado pela população

Estudante de serviço social e dançarina de um grupo tradicional de carimbó no arquipélago do Marajó, Ana Maria Marques, 24, estranhou a forma como foi tratada ao participar de um concurso de beleza paraense no ano passado, o Rainha das Rainhas.

“As pessoas me olhavam diferente quando eu falava de onde vinha: algumas com preconceito, outras com pena”, conta. “Foi depois que saiu aquela música.”

A canção à qual se refere é “Evangelho dos Fariseus”, da cantora gospel Aymeê, que cita o desaparecimento de uma criança no Marajó —e que ficou famosa quando a autora disse, no Domingão do Huck, da Rede Globo, que “lá tem pedofilia em nível hard” e que “criancinhas se prostituem dentro dos barcos por R$ 5”.

De 2024 para cá, uma leva de produtos culturais deram visibilidade à questão da exploração sexual de crianças e adolescentes nessa região paraense —entre eles, a série “Pssica”, top 10 mundial no Netflix, e o filme “Manas”, finalista na disputa por representar o Brasil no Oscar.

A informação de que meninas ribeirinhas são exploradas sexualmente nas balsas que passam pelo Marajó entrou no centro de uma disputa ideológica após declarações da senadora Damares Alves (Republicanos-DF) sobre o tema, de 2019 a 2022.

Então ministra no governo Bolsonaro, Damares disse que as crianças marajoaras não usam calcinha e têm os dentes arrancados para não morderem durante a prática de sexo oral.

Ao investigar as denúncias e concluir que as informações eram “sensacionalistas e falsas”, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação pedindo uma indenização de R$ 5 milhões à população do Marajó por danos sociais e morais coletivos.

Por email, a assessoria de Damares afirmou que ela já apresentou defesa e “entende que o processo foi movido num ambiente de polarização política e, portanto, tem plena confiança na Justiça por uma decisão positiva”.

Declarou, ainda, que a senadora “jamais teve por objetivo afetar negativamente a imagem dos moradores do Marajó, pelos quais ela tem imenso carinho”.

Em agosto de 2025, depois do fenômeno do vídeo do influenciador Felca sobre adultização e exploração da imagem de crianças e adolescentes na internet, espalharam-se fake news de que ele teria citado o Marajó —o que foi desmentido—, e políticos de direita voltaram a falar das crianças paraenses.

Imersas nesta sucessão de narrativas que transformaram o Marajó em um símbolo de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no país, as meninas e mulheres marajoaras reagem ao estigma sobre a região onde vivem.

Figura icônica no combate ao tráfico e à violência sexual contra crianças no Pará, a freira Marie Henriqueta Cavalcante diz que não dá para negar que o problema existe, mas considera a “narrativa injusta” em relação ao arquipélago. “Pessoas de grande poder se apropriam da situação sem ter conhecimento de causa e estigmatizam o Marajó, como se fosse o único território com essa mazela.”

Irmã Henriqueta vê avanços, especialmente nos procedimentos de denúncia, mas aponta lacunas na proteção. “Onde há miséria e vulnerabilidades social, há um espaço fértil para as redes de exploração. Precisamos avançar muito nesse enfrentamento.”

A Folha ouviu dezenas de moradoras de Breves, a maior das 17 cidades do Marajó, para saber o impacto dessa fama em suas vidas e como se organizam para enfrentá-los. Os relatos foram reunidos em reportagens e em documentário sobre o tema, intitulado “Manas: entre o Estigma e a Realidade”.

Da adolescente de 17 anos à avó de 76, da parteira tradicional à historiadora, elas se queixaram de uma abordagem que consideram sensacionalista e desrespeitosa com a população marajoara —que, segundo as entrevistadas, não naturaliza esse crime.

“Falou de violência sexual, associou ao Marajó. Esse estigma incomoda. Essa ideia de terra sem lei, de naturalização, é até perigosa, porque pode atrair predadores sexuais”, diz a psicóloga brevense Camila Souza, 30.

Ela conta que, quando viaja e diz de onde vem, a única associação que o interlocutor faz é com a exploração de crianças.

Representante da Associação das Parteiras Tradicionais do Município de Breves, Maria Augusta Borges, 60, relembra o que sentiu quando a senadora Damares propôs a instalação de uma fábrica de calcinhas na ilha, por ter ouvido dizer que as meninas não usavam essa peça de roupa.

“Nos sentimos humilhadas como mulheres, como mães que têm filhas, como defensoras de outras mulheres”, define.

“O que me dói mais é divulgarem imagens das crianças daqui, porque eu vejo nelas meus filhos”, complementa Taynara do Carmo, 32, parteira tradicional da mesma associação.

“E fica uma distorção de que a exploração sexual só acontece em lugares remotos, pobres, ribeirinhos. Nas grandes metrópoles e nas áreas turísticas acontece muito, mas não se cria essa mesma comoção nas redes.”

O que dizem os números

Para Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, que atua no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes no país, o risco de se jogar muita luz sobre lugares específicos, como o Marajó, é construir um diagnóstico errado do problema.

“Ao estereotipar uma situação, retira-se a possibilidade de se enxergar esta violência como de fato ela é e que está em todos os lugares do Brasil, em todas as classes sociais. E se não entendermos esta violência com a cara que ela de fato tem, prejudica-se muito o bom diagnóstico e a construção da solução correta”, diz.

Conhecer a realidade da violência sexual é tarefa complexa, já que existe enorme subnotificação de casos. Mas, segundo os dados disponíveis, nem o Marajó nem o Pará são líderes nesse tipo de crime no país.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, o Pará tem 51,7 registros de estupro de vulnerável para cada 100 mil habitantes —um número bem mais alto do que a média nacional (31,6), mas menor que o registrado em outros sete estados (Roraima, Acre, Amapá, Rondônia, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Mato Grosso).

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