Paloma Alves Moura, mulher negra, deu entrada em um hospital. Sentia muita dor e sangramento intenso. Sem atendimento adequado, morreu no mesmo dia.
Das imagens que vemos em filmes ou nos livros que lemos, quando uma mulher realiza um aborto e chega com sangramento no hospital, a cena costuma ser a mesma: ela abandonada em uma maca ou em um canto qualquer, sangrando até morrer.
Essa poderia ser uma cena de ficção, mas com certeza foi o cenário da morte de Paloma Alves Moura, uma mulher negra de 46 anos, que deu entrada em um hospital com muita dor e sangramento intenso.
“Ao longo do dia, foram usados mais de três lençóis, todos completamente encharcados de sangue” relatou a acompanhante. Sem atendimento adequado e oportuno correspondente à gravidade de sua situação, Paloma teve uma parada cardíaca e morreu no mesmo dia.
Apesar do enquadramento elaborado pelo pré-julgamento dos profissionais de saúde, ela não estava gravida, logo não poderia ter realizado um aborto.
E se fosse uma hemorragia por aborto induzido? Da mesma forma, os profissionais não deveriam julgar e punir, e sim cuidar, seguir com condutas médicas para salvar vidas porque esse é o exercício da profissão.
A moralidade que se estabelece nos serviços de saúde tem base nas discriminações explícitas e implícitas que julgam e punem, muitas pessoas morrem por isso. Um corpo negro que sangra entre as pernas sempre pode esperar: “ela aguenta”. “Suportar mais um pouquinho” é a máxima.
Sabe-se que em uma situação de quadro hemorrágico, o tempo é crucial e a demora no atendimento coloca as mulheres e outras pessoas que gestam em risco de agravamento do quadro de saúde, consequentemente de morte materna e outras mortes relacionadas.
O motivo da procura de Paloma pelo serviço de saúde foi a endometriose, que tem como um dos principais danos o sangramento vaginal intenso, além de dores consideradas incapacitantes. Estima-se que 8 milhões de mulheres enfrentam endometriose no Brasil. Os diagnósticos no país têm aumentado 76% desde 2022.
Em 2024 , foram mais de 18 mil internações; dessas, 13,6% precisaram de atendimento de urgência, e foram registrados 29 óbitos com o diagnóstico da doença. Sabemos que o crescimento dos casos de endometriose é uma realidade no Brasil e em outros países, mas isso é assunto para outro texto.
O sangramento vaginal é um dos principais motivos de mulheres procurarem um hospital por consequência de um aborto induzido ou mesmo aborto espontâneo. O estudo GravSus, pesquisa da minha tese de doutorado — um estudo multicêntrico realizado em três capitais do Nordeste brasileiro: Salvador (Bahia), Recife (Pernambuco) e São Luís (Maranhão) — aponta que mais de 50% das mulheres foram procurar atendimento por causa desse sintoma. A morte materna em decorrência do aborto está associada principalmente ao retardo no atendimento, pois foi identificado a demora dos profissionais dos serviços em diagnosticar e tratar as complicações no tempo oportuno.
O estigma e a criminalização, penal e moral, do aborto fazem com que mulheres e pessoas com útero morram em consequência do pré-julgamento de profissionais nos serviços de saúde, seguida de uma tomada de decisão baseada no deixar viver, deixar morrer.
É neste contexto que a história de Paloma se enquadra. A suspeita de que ela teria realizado um aborto fez com que ela enfrentasse os mesmos retardos e negligências vividos por mulheres que chegam aos serviços de saúde em situação de abortamento, principalmente as mulheres negras. Neste caso, temos a sinergia entre o estigma do aborto e o racismo institucional.
A moral, a criminalização e o estigma do aborto contaminam os serviços assim como autorizam os profissionais de saúde a adotarem condutas que colocam em risco a vida das mulheres e de pessoas com útero.