A covardia do ego ferido dos homens, por Cynthia Araújo

07 de novembro, 2025 Folha de S. Paulo Por Cynthia Araújo

  • Depois de velar Carol por suicídio, descobri a acusação do namorado por feminicídio
  • Eu queria me chocar a cada caso de feminicídio como deveria, mas não consigo

Passei as férias, os feriados e a maioria dos finais de semana da infância na Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro. Todos os feriados, a maioria dos finais de semana. A primeira vez que ouvi falar em Ângela Diniz está em algum lugar da minha memória de quando eu tinha sete ou oito anos. Sempre que íamos à Praia dos Ossos, meu pai falava dela. Soube muito cedo da existência de Doca Street.

Na adolescência, descobri que Doca estava solto. Havia matado uma mulher e estava solto. Ninguém conseguia me explicar.

Até que entrei na faculdade e, nas aulas de direito penal, ouvi falar sobre legítima defesa da honra. Eu não conseguia entender. Era algo tão absurdo, tão distante da realidade das mulheres do início dos anos 2000. Ou assim eu pensava.

A “tese” da legítima defesa da honra é a tentativa do agressor ou homicida de uma mulher de colocar nessa mulher a culpa pela violência sofrida. “Matei, porque ela foi infiel e isso fere a minha honra”. É a manifestação mais explícita da misoginia e do machismo. A tentativa de reconhecimento institucional de que a vida de uma mulher vale menos do que a dor de cotovelo de um homem.

O absurdo que a gente imagina superado há pelo menos um século só foi reconhecido como absurdo há dois anos. A “tese da legítima defesa da honra” foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal apenas em agosto de 2023. Sabe o que isso significa? Que ainda havia casos de absolvição de homicidas com base nela. Casos como o de Doca Street.

Como cidadã e operadora do Direito, isso me deixa estarrecida. Mas, como mulher, nem deveria me surpreender. Tenho a pior das sensações ao ler notícias sobre o homicídio de mulheres por seus companheiros: a de que uma grande parte dos homens acabará com as vidas de suas esposas, namoradas, amantes se forem contrariados, se forem questionados, se houver a ruptura da relação contra sua vontade. Eu queria me chocar a cada caso como deveria, mas eu não consigo.

Percebi o tamanho do abismo entre o que sinto e o que deveria sentir lendo o livro “Boca do Mundo”, da escritora Dia Nobre. De alguma forma, suas palavras deram a dimensão da violência que, de tanto acontecer, passou a ser reproduzida com as mesmas palavras, como se as vítimas fossem todas iguais, meros números em um mundo que não foi criado nem por nós nem para nós.

Ao construir novos futuros para as mulheres que sobreviveram, Dia restaurou a humanidade também das que se foram. Algumas dores só são sentidas por tudo aquilo que poderia ter sido e não foi. Para suas personagens, para Ângela, para milhões de mulheres, todos os dias.

No dia 8 de junho de 2022, minha filha fazia um ano. Enquanto cantávamos parabéns para ela, a três quilômetros dali, Carolina Magalhães morria após uma queda da varanda do seu apartamento.

Conhecia Carol e sua família desde nova. Abri uma exceção ao meu rigoroso isolamento durante a pandemia e fui ao velório. Achei que velávamos uma jovem mulher morta por suicídio. Dei as condolências ao seu irmão com palavras para quem está enlutado por um suicídio. Até escolhi um livro para ele, meu amigo de muitos anos, pensando nesse luto especialmente complexo.

Há duas semanas, o então namorado de Carolina, Raul Lages, foi pronunciado por homicídio. É o tribunal do júri que vai decidir se ele cometeu feminicídio contra Carol, como é acusado. Para a juíza do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte-MG, há indícios suficientes de que não foi por suicídio que ela morreu.

No ano passado, enquanto a série “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada” era gravada, eu lia o livro “O Túnel”, de Ernesto Sabato. A leitura me incomodava, mas eu não conseguia parar de ler. Com dificuldade, mas urgência, queria entender o pensamento de um homem que subjuga uma mulher a ponto de se sentir no direito de matá-la, enquanto chama isso de amor.

“Estou te mandando um livro que você precisa ler”, escrevi para o amigo Thelmo Fernandes, ator que interpreta o primeiro marido de Ângela na série, Milton Vilas Boas. Desquitados depois de um casamento de nove anos, ela ficou sem a guarda dos três filhos. Antes de ser morta por Doca Street, Ângela Diniz tentou ser livre. Antes de ser morta por Castel, María, do romance de Sabato, tentou ser livre. Carol também tentava se libertar.

Todo relacionamento que uma mulher começa com um homem traz a incerteza da liberdade. Até quando isso levará ao risco de morrer brigando por ela?

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