- Falta de diversidade é sintoma crônico que atinge as mais variadas esferas da sociedade brasileira
- Aos poucos, em todo o mundo, percebe-se a perda de direitos e que as mulheres deram passos para trás
A atual composição do STF tem apenas uma ministra, e apenas mais outras duas, em 134 anos de história, fizeram parte da instituição. Lula indicou na semana passada mais um homem para o tribunal. Essa brutal desigualdade de gênero afeta diretamente decisões fundamentais para as mulheres, como demonstram as incontáveis barreiras no debate sobre aborto, e espelham um refluxo em todo o mundo no movimento feminista.
Em setembro de 2023, pouco antes de deixar o Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, então presidente da corte, votou pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto) nas primeiras 12 semanas de gestação.
O julgamento foi suspenso após um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Em outubro, Barroso fez como Weber dois anos atrás: antes de se aposentar, defendeu que mulheres que interrompem a gravidez até a 12ª semana não sejam punidas. “As mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia, com autodeterminação para fazerem suas escolhas existenciais”, declarou.
Na mesma ocasião, uma decisão liminar de Barroso autorizou que enfermeiros e técnicos pudessem auxiliar o procedimento de aborto nos casos permitidos pela legislação, estendendo a eles a ressalva de não punição que o Código Penal já garante a médicos nesses casos. Dois dias depois já havia uma maioria contrária à proposta, grupo formado por Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Kassio Nunes Marques, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Edson Fachin. Mesmo sendo óbvio, cabe o destaque: todos homens.
No último dia 5, o presidente e o primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, respectivamente o cardeal Jaime Spengler e dom João Justino de Medeiros (ambos homens), estiveram com o presidente do STF, Edson Fachin (também homem), para solicitar a anulação dos votos pró-discriminalização do aborto por parte de Rosa Weber e Barroso.
Neste momento, só há uma ministra no STF, Cármen Lúcia. Ela carrega, sozinha, o peso simbólico e institucional de representar a voz feminina na principal instituição do Judiciário brasileiro. Em tempos de inegável retrocesso, isso é muito significativo.
A historiadora americana Rebecca Solnit lembra que “o direito de falar, de ter credibilidade, de ser ouvido é uma espécie de riqueza”. Contudo, quando há apenas uma mulher falando em uma instância tão poderosa, essa “riqueza” corre o risco de ser uma exceção, ou pior, uma regalia concedida apenas para cumprir um ritual vazio. Como diz o bom e velho ditado, “uma andorinha só não faz verão”.
Em 134 anos de história da corte suprema brasileira, apenas três mulheres alcançaram vaga lá: além de Weber e Cármen, Ellen Gracie. Nesse contexto, a sub-representação de gênero não é apenas um reflexo de exclusão nas instâncias de poder tomadoras de decisão no país, mas um sintoma crônico que atinge as mais variadas esferas da sociedade brasileira.
Mais ainda, a falta de diversidade em cargos de liderança, e particularmente no STF, revela um desequilíbrio institucional e social que repercute diretamente sobre direitos fundamentais para as mulheres e desliza descuidadamente no silenciamento de pautas que urgem intervenções incisivas, com base nas necessidades e vulnerabilidades da população feminina brasileira, incluindo a crescente violência de gênero e a exploração e abuso de meninas menores de idade.
Voltando a Solnit: “O mundo muda. O silêncio é o que permite que as pessoas sofram sem remédio, o que permite que as mentiras e hipocrisias cresçam e floresçam, que os crimes passem impunes. Se nossas vozes são aspectos essenciais da nossa humanidade, ser privado de voz é ser desumanizado ou excluído de sua humanidade. E a história do silêncio é central na história das mulheres”.
Na semana passada, a HBO Max estreou a série “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada”, que revisita a trágica história da socialite brasileira, assassinada brutalmente pelo namorado, Doca Street, em dezembro de 1976.
No primeiro julgamento, em 1979, o advogado de Doca Street, Evandro Lins e Silva, usou a tese controversa da “legítima defesa da honra” para justificar o crime como um ato “cometido por amor”. O assassino foi condenado a somente dois anos de prisão, cumprindo a pena em liberdade.
A absolvição parcial e a retórica usada pela defesa provocaram revolta: ativistas feministas adotaram o slogan “quem ama não mata”, mobilizando-se em todo o país para pedir justiça. A pressão social e jurídica levou a um novo julgamento, em 1981, quando Doca Street foi finalmente condenado a 15 anos de prisão por homicídio qualificado.
Esse caso se tornou um marco no movimento feminista brasileiro, simbolizando a resistência contra argumentos machistas que tentavam naturalizar a violência contra a mulher.
Os nossos direitos não estavam garantidos, como talvez muitas mulheres acreditassem. Após alguns anos, a luta parece ter enfraquecido, ficando restrita à elite intelectual. Aos poucos, não só no Brasil, mas no mundo, as mulheres deram passos para trás.
Em 2014, a intelectual e feminista americana bell hooks alertava: “Já estamos testemunhando grandes perdas na arena dos direitos reprodutivos. Assiste-se a uma escalada da violência contra a mulher. A força de trabalho está diariamente restaurando o viés de gênero”.
Parece que ninguém a ouviu. Paradoxalmente, os coletivos de mulheres cresceram (grupos de escritoras, tradutoras etc.), mas os holofotes se voltaram para as suas integrantes e não para os direitos e as lutas das mulheres.
Talvez porque, dizia hooks, algumas “mulheres oportunistas aplaudem o sucesso do movimento feminista, mas nos dizem que o movimento já não é necessário, ‘pois todas as mulheres melhoraram suas vidas’; isso a despeito do fato de estarmos num mundo em que as mulheres estão se tornando a maioria entre os pobres de nossa nação, em que mães solteiras são patologizadas…”.
Alguns coletivos contemporâneos de mulheres deixaram de fora colegas com vozes dissonantes, colegas periféricas… Nada disso ajuda a causa, que é bem maior.
No Dia da Consciência Negra, o presidente Lula indicou um novo ministro para o STF: um homem branco e conservador, Jorge Messias, que já opinou que a regulamentação dos procedimentos para realização do aborto, nas situações permitidas por lei, só pode ser feita pelo Congresso. O que isso significa? Que o Congresso decida, seja ele conservador, como o é, ou não.
A semana passada foi mesmo de retrocessos. O presidente também proibiu a linguagem neutra em documentos oficiais. Proibir é censurar. A língua muda porque a sociedade muda.
Dilma Rousseff gostava de ser chamada de presidenta e foi motivo de piada, vale lembrar. Há quem diga que a linguagem neutra complica uma comunicação que precisa ser simples e que muitas pessoas não a compreendem.
De fato, não é fácil entender essas mudanças e não houve uma ampla conversa sobre elas. A linguagem neutra permaneceu restrita a um grupo e isso tem a ver, parece, com uma sociedade que foi se dividindo em pequenos nichos que conversam apenas com seus membros —e por vezes não permitem “estrangeiros” neles.
Há quem defenda essas medidas, alegando que é preciso ceder, fazer conchavos. Mas, de conchavo em conchavo, não se reconhece mais o governo que subiu a rampa do Planalto com indígena, negro, mulher e até mesmo com um caramelo (um cão tipicamente brasileiro).