Especialistas apontam dificuldade para adesão de prefeituras e da rede pública de educação ao debate de gênero
Em menos de dez dias, quatro casos brutais nos lembraram o que os números indicam há anos: o Brasil não é um lugar seguro para as mulheres. E, embora o país conte com importantes políticas públicas de atendimento às vítimas de violência, como as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), o trabalho de prevenção ainda é escasso e sofre resistência, enquanto a misoginia se prolifera na internet.
Homens de vários perfis lucram com vídeos e cursos que, nas entrelinhas ou diretamente, incentivam a violência de gênero. Enquanto isso, nos espaços oficiais de diálogo com os jovens em formação, ainda há barreiras e limitações para o debate sobre gênero e violência contra a mulher.
“A gente vê muito as iniciativas pontuais, como palestras em escolas. Isso acontece demais. Mas é diferente de estar integrado em um grupo, por exemplo, intersetorial, para tratar dos problemas e dos desafios”, avalia Silvana Mariano, coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídio (Lesfem), espaço que produz e analisa dados sobre crimes de feminicídios, consumados e tentados, no Brasil.
Entre as iniciativas que propõem um trabalho contínuo, está o Maria da Penha Vai às Escolas (MPVE), que promove formação de profissionais da educação sobre a Lei Maria da Penha. De acordo com o Ministério da Mulher, o programa busca divulgar a lei e os direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar para a comunidade escolar e capacitar os profissionais da educação para um olhar mais atento às crianças e aos adolescentes vítimas diretas ou indiretas da violência doméstica.
“Mas não são todos os municípios que aderem, não são todas as escolas que abrem as portas para falar com a molecada, com as crianças, os adolescentes”, avalia Lais De Conti, que trabalha no Centro de Referência da Mulher no município de Araraquara, no interior de São Paulo e é Promotora Legal Popular, acompanhando vítimas de violência.
Além disso, o programa tem como foco a identificação de sinais de violência, mas, no campo da prevenção, deixa a desejar. De Conti ressalta a dificuldade de levar o debate sobre gênero até a rede de educação, espaço que poderia funcionar como porta de entrada para as reflexões sobre os papéis de gênero na sociedade, construindo nos jovens uma percepção de igualdade e respeito.
“Quando a gente quer botar as crianças para refletir sobre quem que fica com os afazeres domésticos da casa desde muito cedo e quem que pode brincar, sabe? A menina não vai brincar enquanto não lava a louça, enquanto não arrumar a cama. E os meninos? Os meninos podem brincar livremente”, exemplifica.
Para ela, a resistência presente nos ambientes de educação formal reflete o conservadorismo da sociedade brasileira. “A gente sente uma certa resistência por medo da palavra ‘gênero’. (…) O pessoal fica com medo da reação da família”, diz.
Da internet à política, o conservadorismo se alastra pelo Brasil, criando uma rede de ataque e resistência às políticas de promoção de igualdade. Nas eleições municipais de 2024, o PL, partido de Jair Bolsonaro, foi uma das siglas que mais aumentou, saltando de 351 municípios para 511, uma alta de 160 prefeituras em comparação com o pleito de 2020.
“A gente tem cada vez mais os municípios sendo governado por setores de extrema direita. Eles absolutamente não se comprometem com nenhuma política de prevenção à violência, com nenhuma política de direitos humanos”, alerta Sônia.
4 bilhões de visualizações na ‘machoesfera’
Um relatório publicado em dezembro de 2024 revela o tamanho da chamada “machosfera”, conjunto de comunidades on-line com a proposta de tratar das dificuldades enfrentadas por eles, como relacionamentos, boa forma física ou paternidade, mas, na verdade, promovem ideias baseadas na percepção de que as mulheres são inferiores.
“Fala a verdade: uma mulher que tem filho vale o mesmo que uma mulher que não tem? Óbvio que não”. “Se você assumir uma mulher rodada e ignorar o passado dela, você vai sofrer as consequências no futuro”. Esses são exemplos do tipo de conteúdo identificado a partir da análise de 76.289 vídeos publicados em 7.812 canais no Youtube na pesquisa do relatório “Aprenda a editar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no Youtube”, do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio do Ministério das Mulheres. Até 8 de abril de 2024, os vídeos analisados somavam mais de 4 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários.
“Entre os vídeos, se destacam os que reforçam a ideia de que as mulheres possuem uma suposta natureza interesseira e manipuladora, atuando ativamente para prejudicar os homens”, alerta a pesquisa.
De acesso livre, esses conteúdos chegam homens de todas as idades, reforçando a percepção de inferioridade feminina, conforme avalia Sônia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
“Quando você tem uma situação em que você tem em redes sociais, o tempo todo, estimulando a violência, colocando situações de como humilhar as mulheres, de como desprezar as mulheres, essa coisa da misoginia, do ódio às mulheres, acaba tornando, a violência, o feminicídio como algo natural”, afirma Coelho, que há décadas acompanha debates sobre a violência contra a mulher.