Narrativas que transformam agressores em monstros isolados mascaram natureza estrutural e previsível da violência contra mulheres e minorias
A comoção, o inimigo conveniente e o debate que ainda não fizemos
Nas últimas semanas, mobilizações em diversas capitais brasileiras reacenderam o debate sobre feminicídios e violências de gênero. Velas, cartazes e marchas expressaram indignação diante de mortes que — longe de serem exceções — seguem em curva ascendente há anos.
Ao mesmo passo, reações em redes sociais e parte da cobertura midiática voltaram a apostar em um antagonista familiar: o monstro. O doente. O vil isolado cuja existência seria a única explicação possível para o inaceitável.
A repetição desse imaginário — que aparece imediatamente após cada caso de grande repercussão — cumpre uma função: produz um inimigo manejável, moral e individual. Mas desvia do que as estatísticas e a pesquisa acadêmica mostram com contundência: a violência é múltipla, cotidiana, previsível, difusa e amplamente distribuída entre “homens comuns”. A figura do “outro monstruoso”, ao contrário de proteger, estreita o campo de visão e impede vítimas e agressores de reconhecerem a si mesmos nos fenômenos que protagonizam.
A insistência em narrar a violência de gênero como obra de monstros impede o enfrentamento das violências que se escondem atrás da normalidade. Os arquétipos não existem.
Há décadas, pesquisas identificam estereótipos pré constituídos e persistentes sobre quem seria o “agressor típico”. Para crimes sexuais, a imagem difundida é a de homens socialmente isolados, solitários, sem vínculos afetivos e estranhos às vítimas. No caso da violência doméstica, projeta-se o arquétipo do homem forte, agressivo, explosivo e usuário constante de álcool ou drogas.
Nenhuma dessas imagens encontra respaldo empírico. Pior: são fantasias socialmente reconfortantes, não descrições sociológicas.
O “predador sexual” que ataca desconhecidas na rua é exceção estatística: quase 70% dos estupros e estupros de vulnerável ocorrem dentro de casa e são cometidos por familiares ou parceiros. O agressor é, majoritariamente, um homem conhecido — frequentemente um homem com profundos laços de afeto em relação à vítima.
Gisèle Pelicot e a falácia do “outro”
Um homem foi detido por um segurança de supermercado por tentar tirar fotos por baixo das saias de mulheres que estavam no local. Diante da ocorrência, a polícia decidiu apreender o telefone e o computador do detido. Ao analisar os bens apreendidos, descobriram uma biblioteca organizada com mais de 20 mil imagens e vídeos de 71 homens tendo atividades sexuais com uma mulher inconsciente.
Essa mulher era sua esposa, quem ele conheceu quando tinha 19 anos, e que era mãe de seus filhos e avó de seus netos. Nesse mesmo computador, foi encontrada uma pasta intitulada My naked daughter, com fotos de sua filha seminua, em claro estado entorpecente. Para além do óbvio, o caso alarmou pelo perfil heterogêneo dos demais homens envolvidos no caso.
Ao fim e ao cabo, 50 homens foram levados a julgamento. Esses homens têm idades completamente distintas, alguns são pais, alguns são avós e as profissões variam de caminhoneiros e seguranças a bombeiros e soldados. Não existia histórico de violência, abuso de substâncias, brigas constantes entre o casal e o agressor se recusa a ser entendido como alguém que sentia ódio em relação à vítima.
Ao contrário, durante todo o julgamento, Dominique repetidamente sustentou que ama profundamente a ex-esposa e sua família. O caso escancara o que políticas públicas, mobilizações sociais e a grande imprensa parecem hesitar em dizer: o agressor não é o outro. Ele é um de nós. Ele é parte do tecido social — e não sua anomalia.
Violências que não cabem na narrativa do monstro
Quando a mídia e, por extensão, a opinião pública abraçam a narrativa do monstro, criam um problema político grave: instala-se uma incapacidade coletiva de reconhecer as violências corriqueiras.
Tragédias, claro, devem ganhar espaço no noticiário: informam, educam e humanizam as vítimas. O problema é quando apenas a barbárie — e o bárbaro — recebem atenção, empurrando o pêndulo do aceitável socialmente para um extremo que distorce o fenômeno.
As vítimas não se reconhecem como tal porque ilusionam que a violência legítima, a agressão de verdade, se manifesta somente de maneira escrachada, gráfica, e não percebem que estão sendo violentadas nas ocorrências perpetradas na rotina, no cotidiano.
Fenômeno da mesma origem acontece com os agressores que não se reconhecem como causadores da violência ou sequer acham que a forma como agem está errada. Ao não se identificarem com o arquétipo do monstro construído no discurso maniqueísta, não tecem reflexões críticas sobre seus próprios comportamentos de dominação.
A violência de gênero não se manifesta apenas quando a bestialidade é explícita. Ela está presente no estupro marital, na violência psicológica, na dilapidação patrimonial e em todas as situações em que o consentimento é forçado, presumido ou simplesmente ignorado.
Aparece na divisão desigual das tarefas domésticas, nas responsabilidades de cuidado atribuídas como destino, na infidelidade compulsiva e no abuso de álcool e outras substâncias que recaem, quase sempre, sobre as mulheres ao redor. E não se restringe às parceiras românticas: atinge mães, avós, irmãs, amigas, funcionárias, colegas de trabalho — um arco amplo de relações onde a violência, tantas vezes, se disfarça de rotina ou de “traços de personalidade masculinos”.
Todas essas violências compõem a mesma estrutura que alimenta feminicídios, e a dissociação psíquica coletiva que nos impede de reconhecê-las preserva a arquitetura social que subordina mulheres.