(Mariana Filgueiras, de O Globo) Acompanhamos a rotina de seis jovens cariocas que contrariam as estatísticas
Na manhã do dia 26 de abril, Nathalia Wilkens, de 16 anos, aluna do 1º ano do Ensino Médio no Colégio Estadual Julia Kubitschek, no Centro, saía de uma prova quando foi alcançada pelo professor de Biologia. João Alves, de 62, 40 deles de magistério, percorria a escola convidando as alunas que eram mães para um bate-papo com estudantes de outra turma. Tímida, Nathalia titubeou. Mas como estava com o horário livre até a tarde (o colégio funciona em período integral), aceitou participar.
Às 10h, tomou lugar entre três jovens grávidas e uma já mãe, como ela, sentadas numa fileira diante de outros 30 alunos no auditório da escola. A atividade fazia parte das aulas de Reprodução Humana do 3º ano. O professor explicou a primeira regra do debate: cada aluno faria uma pergunta sobre o tema às convidadas. E a segunda: nada de constrangimentos. Em seguida, ele passou um filme didático sobre gravidez e falou sobre a importância de as jovens continuarem na escola. O primeiro aluno, ao fundo, quis saber de Nathalia:
— Qual foi a primeira pessoa para quem você contou que estava grávida?
Outra aluna perguntou:
— Você pensou em parar de estudar?
Nathalia foi firme:
— Nem pensar.
Entre perguntas ingênuas (“Qual o nome do bebê?”) e delicadas (“Por que você não usou camisinha?”), os jovens foram tirando suas dúvidas com a ajuda do professor.
— É fundamental abrir este canal com os alunos, tirar a teoria do livro — explica João, que desenvolve a atividade desde 2005. — Em todos esses anos, notei que as alunas grávidas ficam muito perdidas, sem saber o que fazer. A família briga, o namorado some, a sociedade cai em cima. Apesar de acontecer quase sempre por ignorância ou irresponsabilidade, eu, como educador, não posso deixar de acolhê-las. Já que ocorreu, aproveito a chance para que os outros alunos discutam.
Na escola, o índice de evasão por gravidez é zero — uma exceção à regra. No Brasil, a evasão escolar, segundo dados do Censo 2010, bate os 10%. É a pior taxa entre os países do Mercosul. Só no Rio de Janeiro, o número de alunos que abandonaram a escola passou de 7,8% em 2001 para 16% em 2011, de acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).
A gravidez na adolescência é uma das principais causas da evasão. Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre as meninas de 10 a 17 anos que não tiveram filhos, 6,1% não estudavam em 2008. Já entre as que tinham, o percentual chegava a 75,7%.
Nathalia é uma das seis meninas que a Revista O GLOBO acompanhou no último mês. Jovens que não desistiram da escola, apesar da maternidade precoce.
Às 11h30m daquela quinta-feira, o namorado de Nathalia bateu à porta do auditório com um bebê no colo. Todos os dias ele leva Caíque, o filho do casal, para ser amamentado no intervalo das aulas. Caíque estava de tênis novos. Era seu primeiro aniversário.
Nathalia engravidou aos 14 anos, “por burrice”, simplifica. Não se preveniu. Quando soube, escondeu da família. Saiu da escola com oito meses de gravidez e voltou no início deste ano letivo. O namorado ficou ao seu lado, mas ela e o bebê ainda moram na casa da mãe dela, que fica com Caíque para a filha estudar.
— Dá muita saudade, mas, quando ele crescer, vai entender — afirma a menina, que diz ter mudado completamente desde que o filho nasceu. — Antes eu não queria saber de nada, agora sempre penso nele antes de tomar qualquer decisão.
Ao lado de Nathalia, no debate, estava a estudante Érika Cristina Rangel, de 18 anos, aluna do 3º ano. Grávida de sete meses, ela repete a história da família: a avó teve o primeiro filho aos 15; a mãe, aos 16; Érika, aos 17. Com uma diferença: aluna com média 8,2, Érika não cogita abandonar suas perspectivas. Aposta em três carreiras: além do colégio de formação de professores durante o dia, faz curso técnico de Turismo no Senac de Botafogo à noite e, nos fins de semana, estuda com as duas melhores amigas, Marcelly e Thaíssa, para o vestibular de Direito. O pai do bebê a apoia, mas ela não quis manter a relação.
— É difícil enfrentar sozinha. Mas mantenho as pessoas que amo bem próximas, para não deixar este espaço vazio — diz Érika, que perdeu a mãe há um ano e só conta com a avó para ajudá-la quando Miguel nascer.
Apesar de pouco à vontade com a barriga — os botões da camisa e da saia do uniforme tradicional não fecham mais —, ela já parece confortável com a ideia de ser mãe.
— A ficha só caiu quando o bebê mexeu a primeira vez. Fiquei nervosa, mas aos poucos fui me acostumando. Sempre cuidei dos meus irmãos menores… — lembra Érika, que já fez as contas: como o nascimento do bebê está previsto para junho, ela acredita que poderá retomar as aulas em setembro. — Como moro perto da escola, posso ir em casa amamentar nos intervalos.
Era o que fazia a colega Thais de Moraes Dias, de 18, também aluna do 3º ano: depois que o filho Lucas nasceu, e ela voltou às aulas, ia em casa amamentá-lo uma vez ao dia. A diferença é que, se Érika mora ali nos arredores da Central do Brasil, a dez minutos a pé, Thais vive em Inhaúma. Com sorte, levava 40 minutos para ir e outros 40 para voltar. Sem tráfego, uma hora e meia em cada trajeto.
— Mas era melhor perder só duas aulas do que as aulas de um dia inteiro — pondera ela, que aproveitou o dia do debate para levar o filho à escola e mostrá-lo às amigas.
Hoje, Érika acorda às 5h, se arruma para a aula, dá café da manhã ao filho e encontra o namorado e pai do bebê no ponto de ônibus, onde ele vai buscá-lo. Trabalhando como vigia noturno, o rapaz passa o dia com Lucas para que Thais estude.
Como a maioria dos alunos do curso de formaçãode professores do Julia Kubitschek é menina, a instituição enfrenta o problema com mais frequência do que as escolas regulares. Entre as 954 alunas da rede estadual com idades entre 12 e 17 anos que ficaram grávidas em 2011 (num universo de 263.537, ou seja, 2,7%), cinco eram de lá. Este ano, já são mais três. Ali, a aluna gestante pode ser avaliada no semestre seguinte ao parto, fazer trabalhos em casa ou até levar o bebê à aula. Não é um comportamento padrão: são poucas escolas do Rio que adaptam a rotina para impedir a evasão das estudantes.
Além do Colégio Julia Kubitschek, a Secretaria Estadual de Educação destaca a atividade de apenas outras três escolas no estado: o Colégio Estadual Dr. João Gomes de Mattos Sobrinho, em Inoã, que tem uma parceria com a UFF para prestar assistência às alunas mães; o Ciep Nicanor Ferreira Nunes, em São Gonçalo, que permite que as mães levem os filhos, além de envolver a vizinhança no combate à evasão; e o Colégio Estadual Caetano Beloni, em São João de Meriti, que desenvolve projetos de conscientização.
— Muitas vezes as alunas até querem voltar, falam da escola com saudade, mas precisam de estímulo: a escola deve ligar, procurar, se envolver. Só palestra não basta — alega Aline de Carvalho Martins, assistente social do Instituto Fernandes Figueira (IFF), hospital de referência no atendimento a adolescentes grávidas.
No último dia 24, Aline defendeu na Uerj a tese de doutorado “Maternidade precoce? A (des)proteção pública às mulheres que foram mães antes dos 18 anos”, na qual concluiu que a maioria das políticas públicas aplicadas às adolescentes é ineficiente, quando não fictícia.
— A partir do oitavo mês, a aluna grávida tem direito, por lei (a Lei 6.202), a quatro meses de licençamaternidade. Nesse período, pode fazer os trabalhos e as provas em casa — diz Elvira Lúcia de Moraes, coordenadora de educação básica da Secretaria Municipal de Educação.
O Centro de Referência de Educação de Jovens e Adultos (Creja), no Centro, é uma das instituições municipais que recebem os que querem voltar a estudar. De acordo com a diretora, Fátima Valente, as mulheres, que saíram da escola para cuidar dos filhos, são maioria. Com uma rotina diária de duas horas de aula presenciais e outras duas à distância — um meio-termo entre uma escola regular e um supletivo — foi a única instituição em que Ana Cristina de Oliveira Barreto, de 23 anos, viu chances de concluir os estudos. Ela abandonou a escola quando teve o primeiro filho, aos 15. Só agora, com o segundo e o terceiro já crescidos, conseguiu retornar.
— Só hoje percebo quanto tempo eu perdi — resigna-se Ana.
Os exercícios que leva para casa são feitos nas horas livres na biblioteca que funciona na UPP da Providência, comunidade no Centro em que vive com o marido, os filhos e mais sete pessoas da família. Como o espaço é equipado com TV, computadores, livros e gibis, é a estratégia perfeita para entreter Kauã, Luiz Fernando e Gabriel.
Animada com a volta às aulas, Ana criou um projeto social para as jovens mães da comunidade, o Providenciando pela Vida. Nele, as meninas fazem oficinas e atividades juntas. Inscrito na Agência de Redes para a Juventude, um programa que estimula projetos de desenvolvimento de comunidades pobres pelos próprios moradores, o Providenciando recebeu R$ 10 mil da Petrobras para funcionar em 2012.
— Aqui na Providência a gravidez na adolescência é um problema muito presente — conta Ana. — O que a gente quis fazer foi juntar essas meninas, mostrar a elas coisas novas, estimular os estudos. Eu, que já passei por isso, sei como é importante.
Do outro lado da cidade, na Rocinha, Lidiane Silva, de 16 anos, desde que descobriu que estava grávida, há seis meses, só faltou um dia de aula na Escola Municipal Oscar Tenório, na Gávea. Foi quando sentiu um enjoo muito forte. A responsável pela sua frequência impecável é a mãe, que não deixa a menina pensar em desistir. Afinal, Lidiane já teve de abrir mão da maior paixão, o balé, na gestação.
— Assim que o neném crescer um pouco, volto para a dança — diz Lidiane, que pratica desde menina, na Escola de Dança Francine & Fialho, em Jacarepaguá.
No ano passado, na festa junina da Rocinha, conheceu Lucas Ribeiro, de 18 anos. Pouco tempo depois, ficou grávida. Quando soube, a mãe de Lucas, a dona de casa Rosângela Ribeiro, comprou a briga: enquanto a mãe de Lidiane, Rose, trabalha como empregada doméstica em Ipanema, a sogra leva a adolescente às consultas de pré-natal; e já se prontificou a ficar com o bebê para nenhum dos dois pararem de estudar.
— Agora não adianta nada brigar. A gente tem que ajudar — resume Rosângela.
É graças à família que Clara Almeida de Oliveira, de 18 anos, consegue dar conta de uma filha de 1 ano e meio, de uma de 6 meses e das aulas no 3º ano do Ensino Médio no Colégio Estadual Souza Aguiar, no Centro. Clara mora no Morro da Providência com outras duas irmãs, a gêmea Clarisse, e a mais velha, Luana, de 19. As três tiveram filhos cedo. Clara e Clarisse seguiram os estudos, mas Luana parou. É ela quem fica com os bebês para as irmãs frequentarem as aulas no turno da noite.
No dia das fotos para esta reportagem, Clara contava como se sentiu depois da primeira prova de Matemática que tinha feito desde que voltou às aulas, no dia anterior.
— O professor não entendeu nada, porque eu tirei 0,5 e fiquei muito feliz. Mas era matéria nova e eu não sabia nada, achei que ia tirar zero — sorria a menina, com Carolina no colo, numa praça perto de casa.
Os pais dos bebês ajudam financeiramente, bem como o pai das três.
— A gente é muito unida, não consigo imaginar minha vida sem a Clarisse ou a Luana — diz Clara, lamentando que a irmã gêmea não estivesse presente por estar trabalhando no horário.
O apoio da escola, da família e do pai do bebê são os pilares que sustentam as alunas-mães, concordam especialistas. A assistente social Aline nota que as jovens que chegam ao ambulatório do Instituto Fernandes Figueira estão geralmente sozinhas ou acompanhadas da mãe ou da avó:
— Sem esse apoio, elas não conseguem retomar os estudos, porque a oferta de creches não é uma realidade para todas.
Para estimular a presença masculina no ambiente, ela criou estratégias simples, mas funcionais, como espalhar jornais de esporte na sala de espera e pendurar quadros com fotografias de pais e filhos no ambulatório. Além disso, Aline montou uma cartilha ensinando os pais a demonstrarem afeto pelos filhos. De tão simples, os conselhos chegam a ser desconcertantes, como “olhar mais para o bebê”, “cantar música que o embale”, “registrar o filho para que ele possa ser matriculado na escola”.
Obstetra do IFF, Vander Guimarães, há dez anos atendendo grávidas adolescentes, ressalta os principais motivos que levam ao problema:
— Baixa autoestima, comunicação familiar escassa, déficit de estudos, conflitosm casa, pai ausente ou rejeitador, amigas grávidas, o históricos de mães que também engravidaram cedo.
Era lá no ambulatório do IFF, sozinha, que Maria Luana Hilbert, de 16 anos, esperava a consulta do pré-natal, na manhã do dia 11 de abril. Depois de ser atendida, e verificar que estava tudo bem com o bebê, a jovem contou sua história: aos 14 anos, no 8º ano do Ensino Fundamental da Escola Corcovado, em Botafogo, engravidou. O namorado na época não assumiu; Luana teve Isabela, hoje com 2 anos, sozinha. E saiu da escola.
Pouco tempo depois, conheceu o fotógrafo freelancer Diego Ferret, na época com 22 anos. Estão juntos até hoje. Diego assumiu Isabela — tem o nome da menina numa tatuagem que atravessa o peitoral — e ajudou Luana a voltar a estudar. Ela se matriculou no supletivo do Colégio Pinheiro Guimarães, em Botafogo, e concluiu o 9º ano. Mas logo engravidou de novo, por descuido.
— Fiquei desesperada no início, mas agora estou feliz — diz a menina, enquanto fazia fotos da barriga no Jardim Botânico, com o namorado e amigos.
Luana é a única mãe do grupo de amigos. O pai e a mãe dela montaram um apartamento para o casal, mas nas últimas semanas da gravidez ela se mudou para a casa da sogra, a professora Ana Cristina Albuquerque Ferret, de 52 anos, que dá aulas na Escola Municipal Vítor Meirelles, em Jacarepaguá.
— Antigamente, a orientação nas escolas era esconder essas alunas, para não servirem de mau exemplo. Hoje em dia, é completamente diferente. A gente inclui, ensina, faz projetos, mas nunca acha que vai acontecer dentro de casa — ressalta a professora e avó.
Luana diz que vai voltar a estudar no ano que vem, quando puder deixar os dois filhos na creche.
— Espero que quando termine os estudos já tenha certeza do que quero ser, no que quero trabalhar. Quero conseguir algo em que eu possa dar o melhor para os dois — diz Luana, poucos dias depois de dar à luz Ian, que nasceu forte e saudável às 6h30m do último dia 5.
Acesse em pdf: Adolescentes conseguem levar estudos adiante apesar da gravidez (O Globo – 13/05/2012)