(Rebeca Ramos, do Correio Braziliense) Pesquisa da USP aponta falhas no atendimento prestado a mulheres vítimas da violência doméstica em hospitais públicos. A dificuldade em identificar o crime e a falta de costume de notificá-lo estão entre os erros cometidos pelos profissionais observados
Não bastasse o sofrimento de ser agredida por alguém íntimo, a mulher vítima da violência doméstica ainda trava uma batalha no atendimento hospitalar contra o preconceito e o descaso. A conclusão é de um estudo realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) que analisou as percepções de médicos e de enfermeiras da rede pública de saúde sobre esse tipo de crime. A ideia era compreender como os profissionais entendem essas agressões e se as percepções deles interferem no atendimento às pacientes.
De acordo com a autora do estudo, a psicóloga Mariana Hasse, médicos e enfermeiras têm dificuldades em identificar e acolher os casos de violência que chegam às unidades de saúde, mesmo eles sendo tão frequentes e repetitivos. “Cerca de 35% das mulheres que procuram os serviços de saúde já sofreram algum tipo de violência pelo menos uma vez na vida”, diz.
Os profissionais pesquisados associam as agressões contra as mulheres a questões íntimas dos casais e ao uso abusivo de álcool e de drogas. No caso das enfermeiras, o destaque foi para a atuação da mulher no mercado de trabalho. “Isso teria desestruturado as famílias e estimulado a violência. Essa percepção retrata muito a culpa dessas mulheres por duplicarem as jornadas ao irem trabalhar fora”, salienta Hasse. De uma forma geral, segundo a especialista, a postura dos entrevistados sobre a violência doméstica — origem, motivações, tipos e consequências — foi bem parecida.
Comum e em muitos casos distorcida, essa percepção interfere na forma como a vítima é atendida, indica também o estudo. Monique*, 20 anos, foi esfaqueada pelo ex-marido e, ao procurar atendimento hospitalar, sentiu a indiferença dos médicos. “Foi um descaso. O médico perguntou se a faca estava enferrujada e se eu já tinha tomado as vacinas (contra tétano), mas, em nenhum instante, me questionou sobre como aquilo tinha acontecido comigo”, recorda. A mulher, mãe de um filho, lembra que os médicos conversavam banalidades enquanto a tratavam. Depois, a liberaram sem fazer a notificação do crime.
A coordenadora do Núcleo de Estudos e Programas para os Acidentes e Violências do Distrito Federal (Nepav/GDF), Lucy Mary Stroher, explica que a notificação nas situações de violência é uma obrigação prevista em lei (Lei nº 10.778 de 2003), podendo o profissional de saúde ser responsabilizado em caso de omissão. Esse registro indica à Vigilância Epidemiológica e ao Sistema Nacional de Notificação sobre o ocorrido, além de proporcionar à vítima atendimento psicossocial e encaminhamento à delegacia para a busca de proteção.
“Na delegacia, descobri que o hospital não poderia me liberar sem nenhuma segurança”, recorda Monique. O sentimento dela, quando se lembra do episódio, é de desvalorização. “Como eu sei que eles tratam todas as pessoas assim, não levei para o lado pessoal. Mas acho péssimo pagarmos impostos e sermos tratados com tanto descaso”, desabafa.
Sem orientação
Hasse percebeu que, nos casos em que a violência física era evidente, os profissionais tiveram facilidade em identificá-la. Contudo, a dificuldade em orientar as vítimas ainda persistia, prova de que os servidores públicos estudados desconheciam ou ignoravam a rede de proteção existente. “Os enfermeiros tiveram treinamento sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita ou de confirmação de violência. Por isso, notificaram mais do que os médicos”, indica a psicóloga. Quando a profissional era mulher, foi perceptível a motivação de caráter pessoal e moral em cuidar das vítimas em situação de violência.
A secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal, Olgamir Amancia, acredita que, quando o profissional está preparado a ser sensível às questões femininas, ele percebe uma vítima de violência doméstica sem precisar que ela se anuncie. “A vítima fala de diversas formas. Se o médico ou o enfermeiro estiver preparado, ele vai perceber”, acredita. Para ela, o problema indicado pela pesquisadora paulistana é uma realidade em todo o país. “A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado. Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer”, diz.
Segundo Hasse, a formação oferecida aos profissionais de saúde também deixa a desejar. De forma geral, dificilmente a categoria é formada em uma linha humanista, com condições de entender os processos sociais de adoecimento. Acaba, então, adotando uma lógica causal ao explicar as doenças e uma prática curativista ao tratá-las. “Especificamente falo sobre a precariedade da formação para a questão de gênero e da violência de gênero. Nenhum dos profissionais entrevistados referiu ter estudado o assunto nem na graduação nem nos cursos de pós-graduação”, critica.
A médica sanitarista Karina Morelli, diretora da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Presidência da República, acredita que médicos e enfermeiros deveriam ter uma formação ainda na faculdade voltada para o atendimento à violência doméstica. “Por isso as dificuldades. A violência contra a mulher não é uma doença, não está ligada exclusivamente ao corpo e sim a uma questão naturalizada e cultural”, observa.
Hasse destaca ainda a abrangência desses treinamentos. “Se puderem entender esses processos, vão perceber que só um médico ou só um psicólogo, enfim, que nenhum profissional sozinho é suficientemente capaz de cuidar das vítimas da violência doméstica adequadamente. É preciso agregar saberes e fazeres para isso”, opina.
* Nome fictício
“A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado. Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer” – Olgamir Amancia, secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal
Acesse em pdf: Agredidas também pelo despreparo médico (Correio Braziliense – 20/05/2012)