(Marcelo Dayrell, especial para a Folha de S.Paulo) Deficiente mental, ela perdeu a guarda de 5 filhos. Engravidou do 6º, de um estranho. Teve os direitos violados quando, após o parto, foi direto à laqueadura
No caso aqui apresentado, pode-se verificar a violência ilegítima perpetrada pelo Estado brasileiro.
É um exemplo da violação sistemática aos direitos das pessoas necessitadas praticada rotineiramente na Justiça estadual por juízes, promotores, advogados e até psicólogos e assistentes sociais.
Maria (para preservá-la, uso um nome fictício), 30 anos, mora na Baixada Santista e possui alguma deficiência mental (não se sabe exatamente qual) há vários anos.
Teve três filhos na juventude, com um companheiro já falecido. Ela não cuidava deles de forma adequada, possivelmente em decorrência do seu quadro psíquico.
Assim, em 1998 foi instaurado um “pedido de providências” na Justiça da Infância e da Juventude. A guarda dos três filhos foi dada a parentes do seu finado companheiro.
Maria está hoje em um novo relacionamento, com José, que tem um transtorno mental moderado.
Tiveram dois novos filhos, que são criados pela mãe de Maria, após outra decisão judicial recente.
Em uma das suas fugas de casa, Maria manteve relações sexuais com um homem desconhecido. Engravidou novamente.
O fato de o pai ser um estranho nunca foi um problema para Maria ou mesmo para José. Na verdade, eles logo informaram a gravidez às equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e do Judiciário.
Apesar de já ser a sexta gravidez, Maria sempre se opôs a qualquer cirurgia para cessar sua fertilidade. Aliás, ela e José sempre interrompem o acompanhamento médico e psicológico ofertado, não mantendo nem a terapia medicamentosa receitada.
Em 16 de julho de 2011, houve o parto. Após ele, a equipe técnica do Poder Judiciário e do serviço social do único hospital local discutiram, com o Creas e o Caps, a possibilidade realizar uma laqueadura sem a aquiescência de Maria ou José.
Combinaram que sim. Manteve-se a internação além do tempo necessário pós-parto. Maria foi submetida a uma única consulta. A médica elaborou um laudo com o diagnóstico de retardo mental não especificado. Procuradas, as irmãs de Maria assinaram uma declaração concordando com a laqueadura.
A assistente social e a psicóloga judiciária foram levar o caso ao promotor de Justiça da Infância e da Juventude, para convencê-lo a opinar a favor à laqueadura forçada.
Mas ele afirmou que a competência para a autorização da laqueadura compulsória não era do juiz da Infância e Juventude. Salientou que Maria nunca tinha sido ouvida como parte e que ela não era interditada -suas irmãs teriam primeiro então de propor sua interdição civil.
O juiz da Infância e da Juventude estava licenciado no dia. A decisão ficou a cargo do seu substituto, que rejeitou o parecer e ordenou a laqueadura compulsória. O Ministério Público só ficou sabendo do procedimento após a sua realização.
A partir do “sucesso” desse caso, abriu-se um precedente. A rede socioassistencial do município passou a procurar outros casos de famílias em idade fértil sem histórico de cuidado com os seus filhos.
O argumento utilizado para a realização da laqueadura compulsória sempre foi a necessidade de evitar a concepção de outras crianças.
Diversas discussões caberiam sobre a violação de direitos ocorrida: direito sexuais e reprodutivos, direito ao planejamento familiar, presunção da capacidade civil das pessoas, direito à integridade corporal, direito à saúde, direito à liberdade etc.
Porém, nenhum desses temas jamais foi trazido à baila. O motivo? Não havia quem defendesse os interesses de Maria.
Maria é uma necessitada de assistência jurídica integral. Seu caso demonstra a falta da implementação plena da Defensoria Pública.
Ainda que a defesa técnica não tivesse sucesso junto àquele juízo, poderia ter acionado a Corregedoria do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Regional de Psicologia, o Conselho Regional de Serviço Social ou até manejar a impetração de recursos judiciais para, ao menos, evitar que novos casos ocorram no município.
Mas nada disso aconteceu -e continuarão existindo novas Marias.
MARCELO DAYRELL, 30, é advogado pela USP com especialização em direitos humanos e em movimentos sociais. Coordenou o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte de MG
Acesse em pdf: A laqueadura forçada de Maria e a defensoria, por Marcelo Dayrell (Folha de S.Paulo – 30/05/2012)