(Marie Claire) É um direito das mulheres protestarem nas ruas para poder escolher onde querem ter seus filhos. No entanto, ao assistir à marcha pelo direito ao parto domiciliar me perguntei se marchar pelo direito a dar à luz em casa não é um protesto que poderia aumentar (e mobilizar muito mais gente) se fosse estendido a outras partes de um problema gigante: a qualidade de todo o serviço prestado a gestantes no país.
Algumas declarações das mães que participaram ou apoiam o protesto do último fim de semana me pareceram pequenas diante de tamanha questão. Ao jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, uma arquiteta mãe de dois filhos declarou que “gosta de conforto e parto no hospital não tem nada de moderno”. No site do Fantástico há uma declaração de Sabrina Ferigato, a mãe cujo parto domiciliar, normal e sem anestesia foi filmado, divulgado na internet e assistido por mais de 2,5 milhões de pessoas: “Foi o dia em que eu me senti mais mulher, mais linda. Por esse dia valeu a pena ter vivido”. Não sei se quem passou por um parto normal com anestesia ou por uma cesárea se sente menos bonita ou menos mulher que Sabrina. Nem parece razoável afirmar que parto em hospital não tem nada de “moderno”.
Obsessão pelo parto normal
Com muitas amigas entre 25 e 40 anos, já participei de muitas conversas sobre o parto. Muitas delas se mostram obsessivas com a ideia do parto normal. A mulher de um amigo chegou a ficar deprimida por não conseguir dar à luz como desejava, por parto normal. O radicalismo às vezes é tamanho que parece até que quem não passa pelo esforço ou pela dor do parto normal não é uma mãe tão dedicada como as que passam. Uma amiga grávida me contou que estava fazendo um curso de ioga para gestantes e no grupo dela a pressão não era pelo parto normal. Isso já nem se discutia. O ideal seria o parto normal sem anestesia. Trata-se de um grupo restrito, com privilégios sociais que a grande maioria das mulheres do país não têm. Mas é uma corrente que está crescendo: para lutar contra a ditadura das cesáreas instala-se a do parto normal.
O absurdo número de cesáreas
É verdade que dados do Ministério da Saúde apontam para uma situação alarmante: na rede privada, o índice de partos cesáreos chega a 82% e na rede pública, 37%. A Organização Mundial da Saúde recomenda que essa taxa fique em torno de 15%. É em reação a esse absurdo que, com razão, algumas mulheres se posicionam. O problema é quando vira uma mentalidade radical. E é aí que a discussão corre o risco de se esvaziar. Porque o radicalismo leva à ignorância – e ignorar que nem sempre o parto normal é possível independente do imenso esforço e desejo da mãe é colocar-se em risco.
Por quê tantas cesáreas na rede privada?
A discussão em torno do parto em casa é a evolução desse debate que coloca o alto número de cesáreas do país em confronto com o baixo número de partos normais – e expõe o quadro de colapso que se encontra a saúde brasileira. A pergunta é: o número de cesáreas na rede pública já é mais que o dobro do aceitável, por que no setor privado, onde supostamente as mulheres estariam melhor assistidas, chega a ser quase cinco vezes maior do que o recomendado? “É uma epidemia. É inaceitável para nós. A questão do setor privado aí é escandalosa.
Tem hospitais que se aproximam de 100%”, disse Helvécio Magalhães, Secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde em entrevista ao Portal da Saúde, em novembro de 2011. “E há uma pressão, às vezes, da própria paciente para que isso aconteça, pois há muito desconhecimento em relação à questão da dor. Insistimos que é direito ter anestesia e um acompanhante para haver mais proteção. E tem que deixar a mulher entrar em trabalho de parto (rompimento da bolsa, contrações, dilatação). Só assim, é possível indicar se será necessária a cesárea.” A mesma reportagem alerta que, em certas situações, a cirurgia cesariana traz benefícios à gestante e ao bebê. No entanto, quando feita indiscriminadamente, como vem ocorrendo, pode implicar em riscos para mãe e para a criança.
Maternidades particulares superlotadas
Esta semana conversando com uma grande amiga que acabou de ter seu bebê no melhor hospital de São Paulo, soube que ela passou horas numa maca no corredor pois não havia vaga em um quarto. Pior, disse ela, foi um casal que já havia passado por outros dois excelentes hospitais que o plano cobria e nada de vaga. Desesperado o marido apelou para o hospital onde minha amiga estava, mesmo esse não sendo coberto pelo convênio. As maternidades privadas em São Paulo estão sofrendo com o problema de superlotação? As vagas diminuíram e o número de conveniados aumentou? Com esse aumento do número de usuários, cresceu também o número de bons hospitais privados e o de profissionais da saúde? Não deveríamos perguntar isso aos nossos convênios?
Todas podemos escolher?
Não haverá parto humanizado, em casa ou no hospital, enquanto o sistema de saúde, público e privado, não for humanizado. Infelizmente, o parto domiciliar no Brasil é privilégio de poucas e está longe de ser um direito de todas. Não há lei que proíba uma mulher de ter o filho em casa, mas há um monte de variáveis que distanciam quem pode escolher entre fazer isso ou não. Podemos nos reunir para defender um tipo muito específico de parto. Mas não vai funcionar se antes também não houver mobilização pelo direito ao básico: médicos bem preparados trabalhando em boas condições para todas as mulheres. No público e no privado.
Leia em PDF: Não vale nenhuma ditadura: a da cesárea, a do parto normal ou a do parto em casa (Marie Claire – 20/06/2012)